30 de dez. de 2015

Adeus ano velho...adeus ano novo!




     Nasci em 1970, e vivi desde criança a expectativa de que o futuro aconteceria após o ano 2000. Aquelas coisas dos desenhos e filmes de ficção científica aconteceria magicamente no ano 2000, quando as cidades seriam envolvidas por enormes cúpulas de vidro, os carros voariam e todos teriam inimagináveis tecnologias a seu dispor. Tudo seria diferente, pela unica razão de já ser o "futuro". 
     Só percebi mais claramente essa fantasia pueril em mim aos 30 anos, quando o ano 2000 de fato chegou, e com ele uma bem vinda frustração. Nada referente ao "futuro" aconteceu, nem sequer o bug do milênio se deu. Naquele reveillon não esperava mais, logicamente, a mudança mágica vinda com a passagem de ano, mas me dei conta de que mantinha essa expectativa em algum canto da minha imaginação. Expectativa essa que se fez presente ainda em várias outras passagens que vivi, e que ilustra e amplia uma atitude bastante humana, a de criar expectativas, dar-lhes certeza e encontrar tranquilidade e conforto nelas.   

     Nessa passagem de 2015 para 2016 podemos fazer revisões do ano que se passou, constatar acertos, equívocos e coisas que deixamos pelo caminho. Isso é bom. Podemos também fazer uma lista de coisas que queremos fazer no próximo ano, de metas a serem atingidas, de projetos, de novos rumos que podemos dar a nossa vida, de habilidades a serem desenvolvidas para sermos mais felizes e completos, Isso também é bom. Mas há uma terceira opção que passa facilmente despercebida na hora das revisões, previsões, fogos, rojões, brindes e abraços. Um lugar sutil e fértil, um lugar onde nem estamos no ano velho e nem no ano novo. 

     A passagem do ano é um momento especial, como um ponto zero, um instante nem do passado, do ano que se acaba, e nem do futuro, do ano que nem começou. Por um instante não estamos nem lá e nem cá. Por que não ficar um pouco nesse lugar? Que tal não rever o que passou e nem prever o que virá? Apenas por um instante, podemos ficar nesse ponto zero, nesse lugar nenhum. Sem metas, sem destino, sem culpa, sem peso, sem carga. Só gozando a brisa leve que vem dessa fenda em nosso rigoroso senso de passagem do tempo.
       Essa atitude pode ser um pouca incômoda para nossa pressa e necessidade de controle, sucesso e perfeição, mas ela permite que a vida e a graça possam fluir, e cria abertura e espaço para que o realmente novo possa surgir e se manifestar. 

        Boa passagem para todos nós!!

Marcos Taschetto


5 de out. de 2015

Meu herói Francisco



      No decorrer da minha vida fui encontrando alguns heróis. Alguns deles ficaram como representantes significativos de um período específico da minha vida, tais como fotos importantes do meu passado. Alguns só encontrei recentemente e outros me guiam e inspiram já há um bom tempo. São Francisco de Assis é um desses.
     Na infância tive uma tradicional e convicta educação católica, e quando entrei na adolescência isso foi um prato cheio e um bom motivo para abrir uma crise. De repente, ir à missa, me confessar e seguir os demais ritos passaram a me incomodar. Mais do que isso, a figura do padre foi algo que passei a questionar profundamente. Como ele podia falar o que falava? Quem dava essa autoridade para ele? Passei a perceber incoerências e contradições no que faziam e pregavam, assim como a diferença entre a fé pessoal e a Igreja. E se eu não acreditava mais nesse pacote, como poderia continuar a participar a comungar daquilo tudo? Poderia sair ileso dessa aventura? Essas eram fortes, profundas e difíceis questões na minha mente e coração adolescente. Mas dessa minha saída da Igreja encontrei São Francisco. Que benção!
       Não sei ao certo como isso se deu, mas sei que a partir de um momento estava eu lá lendo sobre a sua vida e tendo ele como inspiração para a minha vida. Quem era essa figura totalmente fora do eixo de tudo o que eu achava que deveria ser um católico, um religioso, ou até mesmo uma pessoa normal? Curiosidade, fascínio e admiração foram me aproximando dele. Ele sim era coerente, inteiro, verdadeiro. Era também radical, corajoso e louco, porém doce e suave. Deu as costas para o que esperavam dele e foi viver o que acreditava, largou tudo. Falava com a natureza, com os animais e falava de Deus de uma forma íntima, fácil e simples. Para ele tudo e todos eram irmãos, até o medo, a dor e a morte. Quem era esse cara? De onde ele veio e o que é isso que me mostrava? Foi um rico encontro que me guia até hoje.
      Muitas reflexões poderiam ser feitas sobre os significados psicológicos de um adolescente encontrando São Francisco, ou da profundidade de tudo o que ele propôs, ou da relação dele com o Yoga. Mas minha relação com ele é pelo coração, sem maiores explicações. Percebo no adulto que hoje sou ainda as ondas transformadoras desse encontro adolescente. Tenho a sensação de que mais do que qualquer outra coisa, o mundo precisa de mais Franciscos. Todos têm seu lugar de importância, mas mais do que sabedores, poderosos, profetas e dignos senhores, precisamos de mais Franciscos, irmãos Franciscos. Somos por vezes terra seca desejando chuva, chuva mansa de simplicidade, verdade, desapego e amor.

        Salve Francisco!  
        Jay Francisco!

Marcos Taschetto


29 de jun. de 2015

Pulando da técnica



       Uma amiga me perguntou por que fui levemente irônico no final do texto anterior (A benção de ser sem noção), quando disse que haviam muitas formas de transcendermos nossa noção de eu, e que isso podia ocorrer “até” praticando Yoga e meditação. “Mas não é essa exatamente a proposta e o objetivo do Yoga e da meditação? O que quis dizer então com essa insinuação de que a transcendência pode não ocorrer justamente nessas práticas?", ela me perguntou.
    Yoga e meditação possuem essa intenção, a de que larguemos a bagagem e vivenciemos o ir para além daquilo e de quem imaginamos ser. E o Yoga faz essa proposta de forma radical e profunda, ou seja, isso precisa ser vivenciado em primeira pessoa, na pele e no coração de quem procura. Yoga é um caminho para se trilhar com as próprias pernas e pés, não é uma trilha virtual, mental, conceitual. Imagine em qual situação o prazer é mais pleno, em se ficar pensando em como a água do mar deve estar boa ou em pular e nadar no mar? Praticar Yoga e meditação é o próprio ato de pular no mar, sem restrições. As especulações sobre isso são só conjecturas mentais e não têm nenhum valor no largar a bagagem.
     Sendo coerente com essa proposta, o Yoga é um caminho essencialmente prático e nos oferece um amplo arsenal de técnicas para pularmos no mar. Há mestres, linguagem e técnicas para todo e qualquer perfil de praticante. Toda a diversidade humana é contemplada no Yoga. Em todas essas propostas a técnica ocupa um lugar especial, assim como o mestre, pois ela é a ferramenta concreta que permite a transformação. 
    Técnica é o modo ou o como fazer algo, e isso deve ser dominado, repetido e aprimorado pelo praticante. Uma das técnicas mais populares e praticadas do Yoga são os asanas, as posturas. Cada uma dessas posturas está associada há muitos detalhes para sua realização. Esses detalhes são na verdade ações que devem ser realizadas em diferentes níveis, quer seja muscular, de alinhamento, respiratório ou de atitude mentai. Algumas dessas ações musculares são bem específicas e que quanto feitas, garantem o alinhamento e a abertura segura do corpo. Todos esses detalhes são importantes e quando somados e integrados, fazem uma enorme diferença na qualidade e profundidade de nossa prática. 
   O mesmo vale para a meditação, pois para experimentá-la, pelo menos inicialmente, não basta sentar e fechar os olhos. A técnica é aqui ainda mais valiosa, pois sem ela, rápida e facilmente nos perderíamos em nossos eternos devaneios, ficando assim longe da atitude meditativa. Assim como no caso dos asanas, incontáveis são as técnicas disponíveis para a meditação.
      Mas todas essas ações são detalhes técnicos, que por mais valiosos que sejam, não passam de saber técnico, de um jeito de se fazer uma coisa. E aqui o exemplo da arte é bem pertinente. Como faço para aprender a tocar violão? Vejo o exemplo de alguém tocando, pego o violão e começo a dedilhar, mas, há não ser que eu tenha um talento excepcional, isso talvez não seja suficiente. A técnica se faz então necessária, ela preencherá esse espaço vazio e facilitará muito a aprendizagem. Então, após algum tempo de prática, já domino o violão, as notas, os acordes, os ritmos, as melodias, sei até ler partitura, e essa condição me diz que sei tocar, que posso até ensinar essas técnicas para outra pessoa. Mas talvez minha música não seja ainda arte, talvez ela não toque e emocione a ninguém. Falta ainda aquilo que está para além da técnica, que apenas o jeito certo não é capaz de produzir e expressar. Falta o ir além da técnica, falta esquecer a técnica e deixar-se ir pela música. A técnica é um caminho para a arte, não um fim em si.
     Podemos ficar fascinados pela técnica, pelo jeito certo de fazer os asanas/posturas e a meditação, assim como de tocar a música, de cozinhar, de vestir, de pensar, de transar, de conduzir a vida. Podemos confundir a técnica com a Vida, o dedo com a lua. Podemos ficar anos praticando asanas e perseguindo cada vez mais detalhes, mais aprimoramento, mais perfeição, mais dificuldade, mais e mais, mas se não abrirmos espaço para a entrega e aquietamento, não teremos em momento algum vivenciado o Yoga. Podemos ficar anos repetindo um mantra e ou contando a respiração, mas se não abrirmos espaço para a entrega e aquietamento teremos apenas sido bons fazedores de tarefa, apenas bons técnicos, sem clareza e transformação, sem meditação.    
     Um mestre é alguém que dominou uma técnica, mas muito mais do isso, ele a transcendeu, foi além dela, avistou aquilo para o que ela aponta, não está mais preso nela.

Marcos Taschetto



10 de jun. de 2015

A benção de ser sem noção


       Numa terça feira cedinho eu indo de bicicleta dar aula. Mudei meu trajeto rotineiro e passo em frente a um parque, onde algumas pessoas estão caminhando e se exercitando em aparelhos. O dia está lindo, céu azul e ar frio, apesar do sol brilhando. Enquanto vou passando pelo parque e observando suas árvores, acabo acompanhando com o olhar o voo de uma ave, talvez um pequeno gavião, cortando o fundo da minha paisagem.

       Por instantes voei com ela. Por instantes fluí pela leveza e amplidão do espaço aberto e ilimitado. Por instantes não era um professor de Yoga indo dar aula, não era um psicólogo que depois de dar aula teria um dia cheio no consultório. Por instantes não estava em uma terça feira de início de mês no auge dos quarenta e pouco anos. Por instantes não havia a menor preocupação com o que havia atrás de mim, com o que me aconteceu no passado, e nem com o que haveria pela frente, no caminho futuro. Por instantes não estava indo para lugar nenhum. Por instantes estar em Taubaté não fazia a menor diferença, assim como saber ou não saber algo sobre alguma coisa. Por instantes não era mais o Marcos que estava ali. Por alguns instantes eu não encontrava-me  restrito nas habituais perspectivas sobre quem sou.

       Por instantes, pois logo aterrizei. Perdi o contato com a ave e voltei a sentir o pedalar da bicicleta. Era terça feira, estava na minha hora e lembrei que precisava mandar arrumar o carro. Em instantes o Marcos estava ali novamente, intacto, pedalando e arquitetando o que e como fazer pequenas e importantes coisas do dia a dia. Mas, por instantes, perdi a noção de quem era, larguei a bagagem e me senti muito bem.

     Compartilho essa experiência para comentar sobre seu significado à partir de algumas possíveis repostas para a pergunta: o que foi isso que aconteceu? Um momento de devaneio? Um pequeno surto dissociativo? Uma “viagem” sem drogas? Uma fuga da realidade? Uma experiência estranha, que por sorte passou logo e que deve ser esquecida? Apenas mais uma dessas coisas meio esquisitas e que não levam a nada e que só acontece com quem vive no mundo da lua? Todos essas respostas podem ser dadas pelo senso comum e também, infelizmente, por boa parte do mundo psiquiátrico e psicológico. Todas elas acabam por descaracterizar e desconsiderar a valiosa experiência de largar a bagagem. Há nelas o entendimento de que houve uma ruptura indesejada e possivelmente patológica e comprometedora. Nossa bagagem é fundamental e deve ser muito bem cuidada e protegida, devemos estar sempre com ela. Mexer com a perspectiva sobre quem somos é, de alguma forma, coisa de louco.

        A bagagem é essa forte noção que temos sobre quem somos, algo tão óbvio que passa despercebido. Os instantes em que voei foram exatamente os instantes em que minha noção de tempo e de espaço não estavam presentes, embora eu estivesse presente (e muito bem, por sinal). Minha presença se deu em outra forma, sem o peso da bagagem que, a partir de meu passado e da consideração pelo meu futuro, determina meu o presente. No voo não havia a noção de encadeamento dos dias, como o de estar numa terça feira e assim já estar automaticamente disposto na condição de ter ainda três dias de trabalho pela frente para chegar no sábado. Era também irrelevante o que tinha para fazer em meus e papéis profissionais e se daria conta disso. Todos esses conteúdos são a própria bagagem que carregamos e que deixa o caminhar mais pesado e repleto de condições já previamente impostas.

        A bagagem é um fato e uma condição humana e ponto. Não há nada de errado com ela. A questão é a limitação e o sofrimento que a identificação com ela nos traz. Esse é um saber que mestres de diferentes tradições milenares apontam sem a menor hesitação: não somos nossa bagagem! Somos algo além da noção que temos sobre nós mesmos. E dizem mais, que essa não é uma experiência restrita, especial e exclusiva de e para ninguém. 

       Quantas vezes você já não largou a bagagem? Quantas vezes já não foi além da noção de quem era? Quantas vezes já não voou? Talvez no calor do envolvimento com a arte ou a religião, em uma brincadeira, no amor, na dor, no contato com a morte, numa situação limite, talvez espontaneamente, e talvez até praticando Yoga e meditação. Pode ser que esses instantes apenas tenham passados despercebidos, ou, quem sabe, tenham sido entendidos inadequadamente como uma falha em deixar cair a bagagem.  

Marcos Taschetto



6 de mai. de 2015

Quem é que tá podendo?



Já no final da primeira sessão pergunto ao paciente como se sente. Ele diz que está bem, que sente-se aliviado, pois esperava que eu batesse mais nele. Ele havia me contado uma parte de sua história, o que incluía a passagem por alguns terapeutas, psicólogos e psiquiatras, e que, em várias oportunidades “apanhou” de seus cuidadores. Na verdade foram situações de confrontos, de apresentação de limites e de não correspondências de suas expectativas o que ele chamava de apanhar, mas a expressão “me batesse mais” tocou-me especialmente, e despertou algumas lembranças.

A primeira delas foi do tempo da minha faculdade de psicologia. Entre nós alunos havia sempre um buchicho sobre quem estava fazendo terapia e de como ela estava. Esse buchicho esquentava quanto se discutia o quanto era bom o terapeuta de cada um, e atingia o seu ápice quando tentávamos deixar claro o poder de cada um deles. Um critério valioso para medir esse poder era o estado em que se ficava após as sessões. Sair arrasado, chorando, desorientado, decepcionado e zonzo era um ótimo sinal! Levar “uns tapas na cara”, umas cutucadas, umas alfinetadas, uns “presta atenção”, ficar sem chão, tudo isso também era entendido como muito positivo. Hoje tudo isso me parece um pouco exagerado, mas era assim que boa parte dos alunos do curso de psicologia avaliavam um terapeuta como bom.

Outra imagem que me veio foi a de algumas situações em que tive a valiosa oportunidade de escutar alunos do ensino médio falarem sobre seus professores. Alguns deles eram considerados bonzinhos, dedicados, educados, legais, mas com pouca ou sem nenhuma “moral” com os alunos. Eram coitados que não conseguiam dominar a turma, que perdiam as rédeas durante as aulas, que choravam e que se sentiam fracos e que não aguentavam o tranco de ser professor. Já alguns poucos professores eram “f....”, com esses eles não brincavam, pois sabiam que eles seriam enérgicos e não deixariam passar nada. Admiravam e temia esses professores durões, apesar de não sentirem-se bem em suas aulas e de não acharem que explicavam bem a matéria. Lembrei-me também de um professor que tive e da postura de alguns professores de Yoga que se destacam pela atitude austera de tratar seus alunos. Tapas, fala rude, cara feia, broncas, rigidez técnica, correções exageradas, aulas muito exigentes.... Tudo em nome de um alto nível de Yoga que muitos alunos pagavam caro para ter.

Lembrei-me também da minha inesquecível época de quartel, ambiente povoado por figuras únicas. Uma delas era um certo capitão com forte sotaque carioca que usava uma boina vermelha. Paraquedismo, sobrevivência na selva, infantaria, técnicas de guerra... ele já tinha feito de tudo no mundo militar, era o próprio Rambo, o “cara” do quartel. Era temido e admirado, intensamente, pelos soldados pela austeridade e rigor com que tratava qualquer situação. Aí de quem fizesse alguma coisa errada perto dele!

Recordei-me de mais algumas outras situações, mas essas já são suficientes para constatar o quanto o poder nos atrai. Todos esses personagens que recordei estavam emanando poder, ou, melhor dizendo, estavam sendo vistos como possuidores de muito poder por seus “subalternos”. Os alunos da psicologia, do ensino médio, do Yoga e os soldados faziam essa generosa concessão à essas figuras. É como se houvesse o seguinte diálogo entre eles: “Veja como eu tenho poder, como eu posso, como eu sei, como sou grande e potente!!”, e do outro lado: “Sim eu sei, eu vejo o quanto você é poderoso e o quanto eu sou fraco, ignorante, inseguro e incapaz, e por isso mesmo tenho por você admiração e temor.” Um diálogo silencioso e invisível, mas que determina as posições de cada um no jogo social, e que tem o real poder de traçar diferentes destinos.

Essa distribuição desigual de poder nos diferentes papéis parece até ser adequada aos objetivos militares, ou àquelas situações onde a intenção de se controlar conduzir o outro se entende como necessária, apesar de tal conduta ser sempre discutível. Mas o que é de se pensar seriamente é a presença dessa situação de poder nas relações de cuidado e aprendizagem. Um professor encarnado de poder não abre espaço para a aprendizagem e descobertas de seus alunos. Um professor de Yoga berrando poder não facilita em nada o mergulho do aluno em sua prática. Um terapeuta sentado no trono do poder não legitima e nem apóia a autonomia de seu paciente. 

Todas essas situações criam a falsa sensação de que só um lado da moeda possui poder, de que há aquele que o tem e há aquele que não o tem. Vaidade bem alimentada de um lado e estima desnutrida do outro. Profundo equívoco, e eficiente forma de se dar o primeiro passo para a luta e guerra pela conquista do poder. 

25 de abr. de 2015

Caminhar, despedir, caminhar....


Este ano de 2015 tem sido um ano de despedidas para mim. Nesses quatro primeiros meses do ano me despedi de minha avó, de minha tia, de meu irmão, minha cunhada e minha sobrinha e também de minha prima, meu “primo” e suas duas filhas. As despedidas de minha avó e de minha tia foram definitivas, não as verei mais. As de meu irmão e prima, e suas respectivas famílias, são relativas, pois entre nós há agora uma grande distância no espaço. Graças à tecnologia poderemos nos falar e nos ver, mas sem abraços, sem toque, sem cheiro.

Despedir-me dessas pessoas queridas foi e está sendo doído. Não poder mais estar com elas, mesmo que fosse apenas algumas vezes por ano ou ao telefone, é algo bastante desconcertante. Ficar com esse vazio é uma tarefa difícil de digerir. O que podemos fazer? Chorar, lamentar, relembrar, revisitar e revirar diversas situações ligadas à quem se foi, tentando, de alguma forma, dar conta dessa coisa que chamamos de separação, e diante da qual, por mais esforços que fizermos, nunca estaremos imunes.

Junto à dor dessas separações me veio um “recado”. Tive a clara sensação de que ao me despedir estava sendo lembrado de uma condição fundamental, daquilo que nos esquecemos facilmente no decorrer da vida, principalmente quando as coisas sequem um fluxo que consideramos favorável. A despedida é o momento em que podemos entrar em contato direto com a impermanência, não apenas daquela situação da qual estamos nos despedindo, mas de tudo o que nos envolve. Despedir-se é reconhecer que não podemos manter, que não podemos permanecer. É reconhecer que, fechar firmemente as mãos não impede que aquilo que seguramos vaze pelos nossos próprios dedos. Despedir é desfazer um pedido, um desejo, é abrir mão dele.

Todos nós sabemos dessa condição, embora isso nem sempre se torne claro. Em um desses momentos para superar a separação, relembrando situações compartilhadas no passado, me ocorreu que, por muito tempo, pela pouca idade e pouca experiência de vida, eu não percebia que em todas, absolutamente todas, experiências que vivi havia sempre um pequeno adesivo colado à elas com a seguinte inscrição: “Isso é Transitório”. O aviso estava ali o tempo todo, eu é que não percebia, eu é que encarava o transitório como eterno e permanente, eu que achava que as nuvens permaneceriam flutuando no céu sempre com as mesmas formas. Quanto sofrimento não se origina desse equívoco?

A despedida pode ser o momento revelador dessa condição transitória de tudo. Pode ser a oportunidade de vermos o adesivo e lembrarmo-nos de nossa condição. Valiosa brecha que permite sabermos que toda natureza pulsa em ciclos com começo, desenvolvimento e fim, e que fazemos parte desse movimento. Não estamos sós, toda a criação compartilha dessa mesma condição, embora achemos firmemente que somos únicos e independentes, apenas por que assim o desejamos.  
    

23 de mar. de 2015

Convite especial - Encontrando Valores: Ética e Yoga


O Yoga é um saber milenar que acabou sendo identificado entre nós como uma prática de posturas físicas. Elas são realmente uma poderosa ferramenta do grande arsenal de técnicas do Yoga, mas essa identificação torna-se facilmente uma grave restrição da proposta libertadora do Yoga. 

Ter clareza sobre o que fazemos, como fazemos e que consequências isso traz para nós, para os outros e para o ambiente é também uma prática de Yoga. Perceber que valores alimentam nossos comportamentos e atitudes, muitos deles sem a luz da consciência, é também uma prática de Yoga. Escolher princípios que norteiem com mais profundidade nossa vida íntima e social também é uma prática de Yoga. 

Muitos são os caminhos para a lucidez. Mais do que técnicas, o Yoga é uma proposta ética para uma vida plena, e essa proposta deve ser exercida e vivenciada no caminhar diário pelo mundo. 

Será com esse norte que trilharemos nesse "Encontrando Valores: Ética e Yoga", onde aprofundaremos algumas questões ligadas à aplicação dos dez princípios éticos do Yoga em nossa vida cotidiana. 




Mais informações: marcostaschetto@hotmail.com

4 de mar. de 2015

Flexibilidade, para que te quero?


Contemple por alguns instantes essa foto. Que sensação ela lhe trás? Você acha que conseguiria fazer igual? Qual será a importância de se fazer tal postura?

                                   Kapilasana: flexibilidade em homenagem ao mestre Kapila

O Yoga possui muitas e valiosas ferramentas, entre elas estão os asanas, as conhecidas posturas físicas. Quase todos os que pensam em praticar Yoga, pensam em praticar posturas, sendo várias delas bem pouco usuais, tais como a acima. Essas posturas podem trazer muitos e  comprovados benefícios, assim também como lesões, se realizadas sem alguns cuidados. Nada que um professor preparado e um aluno dedicado não possam dar conta. Mas o mais importante é que, praticar Yoga não é o mesmo que fazer posturas. Isso pode parecer um pouco confuso, mas é bem simples. Yoga está mais relacionado ao como se faz do que propriamente ao que se faz.

As posturas abrem espaço no corpo contraído e fortalecem o que está amolecido no corpo. Esse trabalho desperta vitalidade e força em todo o organismo, o que envolve todos os sistemas do corpo e não apenas ao muscular. As posturas preparam assim o terreno para outros trabalhos mais sutis, como por exemplo, a atenção ao fluxo e às consequências das eternas oscilações dos conteúdos mentais e emocionais em nossa vida. Sem essa perspectiva a prática de Yoga pode transformar-se em contorcionismo, com o foco não na consciência do que se faz, mas no quanto se faz, no quanto se aumentou ou não o desempenho físico. Nesse ponto, o grau de flexibilidade muscular pode passar a ser sinônimo e o principal avaliador da prática de Yoga, ou seja, quanto mais flexível, mais Yoga, melhor a prática. Nada mais equivocado.  

Flexibilidade é uma qualidade que, se limitada a músculos, serve para pouca coisa. O que uma grande flexibilidade muscular têm a oferecer para termos uma vida mais feliz, realizada e profunda? Como o exercício de realizar posturas difíceis, inusitadas e exigentes pode nos tornar mais lúcidos sobre quem somos, mais amorosos, mais atentos, mais focados e integrados? Ao que parece, esse grande exercício da vontade em fazer proezas com o corpo acaba despertando mesmo é uma sutil vaidade de se ser especial, ou seja, nos deixa mais rígidos, mais fechados em nós mesmos. Ser flexível, além de colocar a cabeça na canela, é poder adaptar-se ao fluxo inesperado da vida, é ser maleável com as situações nas quais não temos controle, e com as que achamos que temos também. De que vale a flexibilidade física se não conseguimos reavaliar nosso caminho e mudar a rota? Se não temos liberdade para mudar o plano e refazer o projeto? Se não conseguimos quebra o ritual, se não podemos voltar atrás?

Praticar a flexibilidade é uma poderosa forma de dissolver nós, blocos, certezas, dogmas, convicções e garantias. Flexibilizar a noção que temos sobre o nosso próprio eu é uma grande, fértil e admirável prática de Yoga, possível mesmo para quem mal consegue sentar-se no chão.

22 de fev. de 2015

A quaresma e o deserto




     Na ultima quarta feira (18 de fevereiro) os católicos entraram no período da quaresma. Serão quarenta dias de preparação para a Páscoa, a grande festa cristã. Essa preparação, entre outros símbolos, se fundamenta nos quarenta dias de introspecção, austeridades e recolhimento que Jesus passou no deserto antes de começar sua vida pública. Também foi nesse retiro no deserto que Jesus confrontou-se com as três tentações do demônio.

     Passar quarenta dias no deserto implica em submeter-se à experiências das quais estamos bem distantes em nossos confortáveis, distraídos, corridos e atropelados dias. Estar no deserto é uma forma radical de lidar consigo mesmo, de aproximar-se nu e desarmado da solidão, da falta, do medo e de muitos, até então silenciosos, fantasmas. É viver na pele a privação das necessidades básicas de alimentação, conforto, segurança e proteção que nos parecem tão imprescindíveis. E mais do que isso, no deserto, o eu e todas suas construções e convicções, é posto a prova impiedosamente à luz do penetrante sol.

     Jesus abriu mão de prazeres e certezas e recolheu-se no deserto em oração e silêncio. Lá se fortaleceu, não apenas por ter sobrevivido fisicamente, mas principalmente por ter confrontado suas profundas dúvidas, na forma de tentações demoníacas, e diante delas afirmar e manter sua missão. Só depois disso partiu para o mundo compartilhando e anunciando sua luz. Essa é uma cena arquetípica, não só restrita à espiritualidade, mas pertinente à necessidade humana de amadurecimento. Esta cena segue um certo roteiro, que passa pelo recolhimento e afastamento do mundo, desapego do que se tinha, entrega e fé a esse processo, confronto com as próprias limitações, purificação, transformação, afirmação de um novo estado de ser e, por fim, a volta ao mundo. Quantas tradições não repetem, a milhares de anos, essa mesma jornada em suas iniciações e treinamentos? Quantas vezes, ao longo da vida, não passamos por algo parecido, embora em escala bem menor, naqueles momentos que antecedem a importantes mudanças?

       Parece-me que atualmente essa imagem de Jesus no deserto está um pouco esquecida, mesmo tendo o cristianismo em sua história uma forte tradição de místicos e padres do deserto. No oriente essa é uma prática mais familiar, que se expressa tanto na forma de vida de eremitas, monges e saddhus assim como na retirada e estadia ocasional e breve de pessoas “mundanas” em monastérios e asharams. Pode-se dizer que nós humanos precisamos e sempre estivemos, de alguma forma, perto do deserto.

       A quaresma pode ser uma aproximação moderna do deserto. Praticar um pouco de jejum, orar mais, ficar em silêncio, abrir espaço para o perdão, se abster de algo prazeroso, fazer algumas mudanças de comportamento, tudo isso pode funcionar como estar no deserto. Tudo isso pode trazer mais vigor para nossa vida interna, mais proximidade do espírito e de tudo aquilo que importa de fato. Essa ida ao deserto só não precisa ser mobilizada pelas equivocadas intenções de mortificação, de penitência e de culpa. Nada há para ser punido ou castigado, pelo contrário, muito há para ser descoberto, revelado, saboreado e vivido, e o deserto apenas ajuda a cozinhar um pouco mais rápido.

Marcos Taschetto



10 de fev. de 2015

A Cantareira vazia nos enche, de angústia


Este início de ano traz uma dose de incerteza maior do que nos anos anteriores. Como todo começo de ano, pairam no ar algumas expectativas sobre o que virá pela frente, o que esperar e sobre quais serão as possíveis dificuldades. Mas, parece-me que neste 2015 temos alguns dados que intensificam essa incerteza. Refiro-me às mudanças políticas e à questão da água.

Percebo essa incerteza nas conversas informais e, de modo mais próximo, no consultório. O consultório psicológico é como uma janela que oferece generosa visão dos bastidores sociais. Aquilo que circula pela comunidade meio sem forma e sem nome acaba ganhando uma cara nas sessões. E neste início de ano essa cara parece ser de angústia.

Quando olhamos para as questões políticas e econômicas surge um misto de sentimentos, que passam pela raiva, pelo insegurança e pelo abandono. Mas esta raiva é uma raiva que não produz ação, apenas queixas e críticas situacionais, e que assim alimentam a indignação, sem ação. Insegurança e abandono em não se sentir representado e protegido, em sentir-se sozinho, e pior, em sentir-se traído pelos políticos, tendo-os como inimigos e não como aliados. Às vezes quase dá para ouvir: “e quem vai cuidar da gente?”, “quando alguém vai fazer alguma coisa?”

Essas questões políticas e esses sentimentos já são nossos conhecidos, não há nada de muito novo nessa situação. O que temos de novo mesmo é a questão da água. O que parecia uma ameaça distante agora é tema urgente de qualquer conversa. A falta de água em São Paulo é algo surreal, quase inacreditável. Esse absurdo é consequência direta de atitudes (ou melhor, de não atitudes) politicas, é mais uma das consequência da situação descrita acima, e da qual dizemos já estar acostumados. Mas além desse aspecto político há uma questão mais íntima, e diria mais primitiva, com toda essa crise da escassez da água.

A ameaça real e tão próxima de ficar sem água, de ter reservatórios, rios e fontes secando, de passar por longas estiagens e racionamentos, tudo isso é uma profunda ameaça à vida em si. A preocupação imediata com o próprio conforto, do qual já somos dependentes, é logo ultrapassada diante das evidentes constatações do grande impacto que a falta de água provocará na produção alimentar, na vida das cidades, na produção energética, na economia em geral, no meio ambiente...

Essa ameaça a vida, tão clara e próxima e ao mesmo tempo tão incerta, produz angústia. A palavra angústia é derivada do latim “angor“ e se refere à sensação de aperto, de opressão e de sufocamento. Alguém angustiado é alguém que está mergulhado em uma difusa tensão, com pouca clareza sobre essa forte sensação, e principalmente, sem muita noção do que fazer para sair disso. A angústia está fortemente ligada à impotência, a não possibilidade de ação, de enfrentamento. Se diante da ameaça sinto que pouco posso fazer, fico então refém dessa situação, congelado, apertado, imobilizado. 

A angústia possui um detalhe fundamental: nela quase não respiramos. Angústia é aperto, e esse aperto é físico, muscular, não é uma metáfora. Apertado não respiro, fico sufocado, com pouco ar, com o corpo em estado de alerta, a vida em risco real. Determinada respiração produz angústia e a angústia produz determinada respiração, essa é uma via de mão dupla.

A angústia foi um dos temas centrais do Existencialismo, corrente filosófica européia que tornou-se popular nos ares das duas Grandes Guerras Mundiais. Hoje as guerras continuam, mas o que parece ser, ou deveria ser, a nossa "Grande Guerra Mundial" é a questão ambiental. Dela não há escapatória e dela não sairá nenhum vencedor. Ou todos abraçamos a causa e fazemos o que é possível ou todos pereceremos. Essa ameaça é global, imediata, irreversível, imprevisível, impactante e, portanto, profundamente angustiante. A falta de água em nossa torneira é uma pequena gota de todas essas transformações em nossa complexa biosfera.  

Diante desse enorme desafio, podemos, e precisamos, tomar muitas decisões, mudar muitas atitudes, achar muitas soluções. Mas essas ações ficarão bastante comprometidas se não respirarmos, se ficarmos imobilizados pela angústia e perdidos em pensamentos catastróficos e recheados de impotência. Diante da ameça precisamos respirar! Reconhecer a angústia, liberar a respiração e, de posse de mais clareza, agir. Agir conforme a nossa criatividade, talentos, valores e possibilidades permitirem.

19 de jan. de 2015

Além das selfies



Faz quase três meses que não posto nada. Nesses quase quatro anos do blog nunca fiquei tanto tempo assim sem escrever. No início eram duas vezes por semana, frequência que foi passando depois para uma por semana e que acabou ficando em uma ou duas por mês. Escrever para o blog é um exercício interessante, pois me abre para experiências que, sem a tarefa de escrever, certamente me passariam despercebidas. Ser capaz de olhar um pouco mais de perto, com um pouco mais de atenção, de abertura e de curiosidade, tudo isso ajuda bastante para escrever. Valioso é que essa atitude é válida tanto para o olhar para fora, o que esta acontecendo em torno, assim como o para dentro, para aquilo que se movimenta em mim.  

Nesses três meses tive vontade de escrever, mas não consegui, ou por falta de tempo, ou por ficar ali mastigando e não sair nada que me empolgasse. Parece haver um tempo ideal, e que deve ser respeitado, entre a experiência, a elaboração e o escrever. Ter essa tarefa de escrever regularmente para o blog me coloca em maior atenção, me põem a cuidar melhor do exercício da comunicação através da escrita e do poder organizar um pensamento e uma ideia, mas também acaba alimentando uma outra poderosa e curiosa atitude mental como efeito colateral.

Em um dos passeios do começo de ano estava em uma bela cachoeira que caía por majestosas e enormes rochas negras. Haviam várias pessoas por lá e depois de achar um canto para ficar observei que praticamente todos tiravam fotos. Claro que essas fotos não eram da cachoeira, mas sim selfies. Observei a mesma coisa em outras situações (bem, e quem não observa isso em qualquer lugar?). Diante da energia radiante da cachoeira e da dedicação aos selfies fiquei com a impressão de que o registro era mais importante que a experiência, de que a foto na cachoeira era mais verdadeira que o banho nela. Cito essa passagem da cachoeira por achá-la muito parecida com o que acaba acontecendo comigo no exercício de escrever para o blog.

Diante da experiência uma parte minha fica de fora, uma parte mental, observadora, analítica, racional. Essa parte está ali para registrar e entender o que está acontecendo, para fazer relações entre conceitos e fatos e preservar a minha pessoa como o “quem” está vivendo aquilo. Vou ao dentista e enquanto ele faz um procedimento percebo a sutileza, a força e a sensibilidade dos dentes e da gengiva. Essa percepção produz uma clareza sobre o meu corpo e outras questões. Pronto, já é o bastante para disparar o flash de mais uma selfie, ou de mais um texto, que pode ser postado e que pode ser mostrado e curtido e... bem, assim a experiência acaba fica num segundo plano, sendo ofuscada pela necessidade de registrar e analisar.

Esses três meses sem escrever balançaram, para minha leveza, essa minha necessidade de registrar e criar um texto. A experiência direta é primordial, e dela pode ou não vir uma clareza, um entendimento, um texto, ou mesmo uma foto, que podem ou não fazer sentido quando compartilhados.


Um ano novo com mais experiências e menos selfies para todos nós!