4 de jun. de 2016

A meditação e o desapego



         O yoga é uma prática milenar sustentada em alguns princípios fundamentais comuns a várias correntes da espiritualidade universal. Entre esses o desapego (vairagya) é um central. Desapego é um conceito que pode ser facilmente associado ao ato de largar bens materiais, de despojar-se de confortos, vaidades e de todo e qualquer tipo de posses. Sim, o desapego pode ser compreendido por esse viés, que se cristaliza na figura emblemática do sadhu, aquele adepto hindu que renunciou aos jogos da sociedade e do mundo. Ele vive nu, sem moradia, sem pertences, sem nenhum vínculo social, a não ser o de ser um sadhu, um homem santo cujo papel social ocupa um lugar de admiração e destaque dentro da cultura hindu. 

          Entretanto, nesse ato de renúncia do sadhu há um ponto curioso, pois ele na verdade faz uma troca de papéis, quando abandona um status para assumir outro, que por sinal, é considerado mais elevado que o anterior. Agora ele não é mais um homem comum, do mundo, ele tornou-se um comprometido com a busca espiritual, ele está mais próximo do divino, daquilo que os simples mortais ainda precisarão de muito esforço para alcançar. Desapegou-se de uma condição e apegou-se a outra, largou uma roupa e vestiu outra, mais sutil, mais sedutora. Essa contradição da troca de apegos, anunciada como desapego, pode ser observada em qualquer outra prática de religiosidade e/ou espiritualidade.

          No yoga desapego não é sinônimo de não ter bens, de não possuir nada material, ou muito pouco, a direção é outra, busca-se algo mais consistente do que medir a quantidade de coisas que se carrega pela vida. A questão principal do desapego está na relação que estabelecemos com aquilo que desejamos. Não se trata sequer de não desejar, mas sim do como conduzimos o nosso desejo. Na definição clássica de Patanjali, desapego é a capacidade de não desejar aquilo que é visto ou descrito. Há o desejo que surge do nosso contato com os estímulos do mundo, porém, e esse é o ponto fundamental, ele é percebido por uma presença interna que observa e nos permite não responde automaticamente ao pedido do desejo. Desapego é essa habilidade de não reagir de forma impulsiva e identificatória com o pedido feito pelo desejo. O desejo aparece, e seguindo seu fluxo, desaparece, e assim será substituído por outro, e outro, e outro, e assim eternamente. O desejo passa, entretanto, a presença fica.

       Fica fácil perceber e sentir esse processo durante um passeio por qualquer shopping, ou enquanto assistimos TV ou navegamos pela internet, o tempo todo somos estimulados a desejar muito. Se nos identificamos com esse desejo haverá empenho e investimento para realizá-lo, precisamos fazer isso, afinal de contas somos esse desejo. Neste ponto já estamos apegados ao desejo, já o seguramos firmemente nas mãos. No caso do shopping, o resultado objetivo será quase sempre a compra compulsiva do mesmo desnecessário de sempre, enquanto o resultado subjetivo pode ser sentido como uma constate e insaciável insatisfação, que se expressa na espera ansiosa por segurar firmemente nas mãos as próximas sacolas de compras.

        O yoga caminha na contramão desse nosso movimento de apego, quando apresenta meios para que desenvolvamos a capacidade de desapego. O mais interessante é que esse desenvolvimento não precisa ser necessariamente algo conceitual, o que é bom, pois diminui o risco de o desapego se tornar apenas um discurso filosófico e estéril. Dentro das muitas técnicas do yoga, a meditação é a que por excelência desenvolve a prática do desapego. Mas de que forma isso ocorre? O mecanismo básico de toda e qualquer técnica meditativa é a observação de um foco específico, seja ele qual for. Durante a prática da meditação esse foco deve ser mantido, e quando perdido, o que certamente ocorrerá, retornamos à ele, abandonando-se assim aquela distração que nos desviou do foco proposto. Muitas vezes o conteúdo dessa distração é algo banal e desprovido de valor, coisa fácil de renunciar, mas muitas vezes, e é bem aqui que se encontram algumas armadilhas do caminho pela meditação, esses conteúdos são intensos e percebidos como valiosos e importantes, há neles muito desejo investido. De repente lembranças distantes e significativas vêm à mente, um forte colorido emocional é liberado, grandes insights sobre a vida surgem, visões, sensações, e coisas do tipo apresentam-se vividamente no palco da consciência. Conteúdos encantadores que abraçamos e queremos segurar firmemente nas mãos, experiências com as quais nos identificamos e nos apegamos, tal com os produtos expostos na vitrine atraente e chique do shopping. O que fazer então? Praticar o desapego, a renúncia, o abandono, largando o encanto da distração e voltando ao foco combinado. Prática de desapego das experiências internas, daquilo que desejamos como nossa identidade e como nosso ideal, prática de meditação, cultivo do estado meditativo.

         Interessante que esse aspecto tão profundo e transformador ganhou uma definição bem objetiva e dentro dos critérios da pesquisa científica através do trabalho do pesquisador, médico e professor de meditação Roberto Cardoso. Ele propôs uma definição operacional para a prática da meditação, onde necessariamente precisa ocorrer, entre outros aspectos, o foco da atenção em uma âncora e o relaxamento da lógica. Relaxar a lógica é não alimentar as infinitas associações de pensamentos, onde um leva a outro, que se associa a outro, a outro, e assim vai. Relaxar a lógica é praticar o desapego, é renunciar a esse grande prazer que temos de ficar pensando, desejando, pensando, desejando, pensando... Prática essa que não está restrita aos sadhus hindus e nem carece de nenhuma atitude radical, mas que pode ser experimentada na própria pele com apenas um pouco da atenção em si mesmo.   

Marcos Taschetto