27 de fev. de 2012

Traduzindo-se

"Traduzir-se"

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida e morte-
será arte?

Após escrever a última postagem me lembrei desse poema do Ferreira Gullar. Nada como um poeta para traduzir nossa paisagem interna.

22 de fev. de 2012

Vestir e tirar a fantasia




O carnaval faz um convite bem interessante, o de vestir uma fantasia e brincar.  
Vestir uma fantasia é uma oportunidade de tirar a nossa fantasia de ser apenas um. Em nosso mundo interno somos muitos, nele coexistem vários eus, vários personagens representantes da imensa gama de possibilidades humanas: gênios, obscuros, suaves, grosseiros, pequenos, gigantes, adoráveis, santos, repugnantes, e muitos outros. E, claro, há muita contradição num bloco tão heterogêneo. Por vários motivos, poucos deles podem participar mais claramente da nossa vida, o que é uma pena, pois, certamente isso nos deixaria mais completos e ricos, e mais complexos também. A maior parte dos membros desse multifacetado e admirável bloco chamado “eu”, fica de fora, não tem o autorização para entrar na avenida. Ficamos assim, empobrecidos, previsíveis, rasos, adaptados e buscando uma coerência constante. Ter contato com esses muitos “eus” é uma via de transformação e libertação. Ampliamos nosso repertório ao termos acesso às possibilidades da humanidade que vive dentro de nós.

De uma maneira geral esse é o caminho da psicoterapia, entrar em contato e resgatar alguns desses personagens que foram ou esquecidos ou banidos da consciência. O yoga olha mais adiante, aponta para o que está além desses muitos “eus”, aponta para o purusha, a nossa identidade última e transcendente, que está além de qualquer papel e personagem.
Fantasia em São Luis

17 de fev. de 2012





"Se você pensa que é o seu corpo, está enganado.

 Se você pensa que não é o seu corpo, está enganado também.

A verdade é que, embora o corpo nasça, viva e morra,

 só por intermédio dele você poderá ter um vislumbre do divino."

                                                                          B.K.S.Iyengar

12 de fev. de 2012

Yoga não acontece apenas em cima da esteira

Qual o melhor lugar e a melhor hora para se praticar yoga? Aqui e agora, sempre! Não há nenhuma separação entre o estado de yoga, o yogui e o fluir da vida. Isso significa que, para poder praticar, não dependo apenas do horário e do local da aula, nem de roupa especial, nem de ter vários acessórios, nem “daquela” condição física, nem esperar estar num dia melhor, mas principalmente, não preciso necessariamente fazer posturas (asanas). O asana é um recurso utilizado especificamente por uma linha de yoga, o hatha yoga. Além de ser uma poderosa ferramenta para recuperar e manter a vitalidade do corpo, o asana é essencialmente um meio de disciplinar a atenção e ampliar a consciência. E a consciência não está limitada às dimensões do tempo e do espaço.
Yoga é uma ética, uma filosofia de vida, portanto para sua prática o que é mesmo indispensável é estar vivo, com alguma consciência. Consciência de como habito o corpo, de como conduzo minhas emoções e pensamentos, de como alimento minha alma, de como estou fluindo por esta vida.
O yoga se fundamenta em alguns princípios éticos que nos auxiliam muito nessa jornada da consciência. Amiúde eles nos reviram mais que os asanas, pois deixam evidente que temos pouca consciência e controle sobre o que fazemos, ou queremos fazer. Sem esses princípios a prática pode não ter muita profundidade, ou seja, pode ser pouco transformadora e não desabrochar mais consciência. Esses princípios são simples, abrangentes e universais, não há nenhuma novidade neles, mas quando são vivenciados podem mudar nossa vida.  
Um lembrete que me ajuda muito a aprofundar minha prática é: o yoga não acontece apenas em cima da esteira, yoga é um jeito de viver.

7 de fev. de 2012

Num desses dias de calor

“Nossa que calor!” “Como hoje está quente!” “Meu Deus... que calor!”
Parece que essas frases se tornaram verdadeiros mantras nos últimos dias. Em dias quentes se reclama do calor, em dias frios se reclama do frio, em dias mais ou menos, se reclama da falta do sol, ou de qualquer outra coisa. E assim vai sendo dado um pano para uma manga que não tem fim: o prazer de queixar-se.
É impressionante como o calor fica mais intenso e desconfortável com o tempero de várias e insistentes queixas. Sem nenhuma denúncia, de como a temperatura está insuportável, a sensação certamente é outra. As reclamações têm o poder de gerar inquietação mental, algo fica ali borbulhando, se coçando, querendo sair na forma de uma re-clamação (clamar de novo).
A queixa do calor me lembra uma situação que passei no quartel. Estávamos eu e mais uns 50 soldados, em treinamento de guerra, ou seja, no meio do mato rastejando, carregando mochilas, fuzil e várias tralhas, sem comer e dormir direito, ouvindo os berros dos sargentos, e, imersos naquele clima misto de brincar de soldado e ser homem de verdade. Em uma das “aulas” sobre guerra, ficamos todos sentados no chão de capim dentro de uma barraca super abafada, logo depois do almoço. O calor era desse que tem feito ultimamente. O tenente que ia falar era apenas um pouco mais velho que nós e parecia um garoto meio sem jeito. Ninguém dava muita atenção ao que ele falava, mas nessa situação ele acabou sendo um grande professor. É lógico que estava insuportável ficar ali dentro ouvindo ele falar, pois havia também o calor, coceiras, sono, fome, irritação, dores no corpo, sede, e mais quase tudo que poderia justificar muitas re-clamações. Nesse clima de inquietação e quase desespero geral, ele deu um berro e mandou que ninguém se mexesse mais. Isso implicava em não se cocar, não tirar o suor do rosto, não baixar a cabeça, não bufar e nem se abanar. Pior que isso não dava. Mas então, algo foi acontecendo silenciosamente. Passados alguns minutos de obediência daquela ordem absurda, um novo clima surgiu dentro da barraca infernal. Ela agora não era mais infernal, pelo menos para mim. Suportei, e isso me aquietou. Todos os incômodos continuaram ali, mas com uma intensidade diferente. Não havia mais o desespero, nem nada insuportável. Eu estava quieto percebendo tudo em volta, inclusive a “aula” de guerra se transformou, agora ela era como a coceira, estava ali, mas não me irritava mais. Quando o tenente percebeu que o clima havia mudado, comentou que era isso mesmo que ele queria provocar. Eu sorri satisfeito com o que havia descoberto em mim.
Na época eu lia sobre yoga e fazia algumas práticas, mas não fazia a menor idéia de que esse tenente havia me ensinado muito sobre tapas (auto superação), sobre santosha (contentamento) e sobre meditação (aquietar as oscilações mentais). Na verdade a aula de guerra foi uma prática de yoga. Mas essa lição só foi possível, pois fazia calor e havia muitas queixas. Tal como nesse dias de verão.   

1 de fev. de 2012

A carne na mesa

Já faz alguns anos que não como nenhum tipo de carne. Essa foi uma decisão quase inevitável para mim, pois a carne nunca me caiu muito bem e não sinto a menor falta dela, pelo contrário, tenho até certa repulsa a ela. Além do gostar ou não gostar, há muitas outras questões que envolvem o comer ou não comer carne, tais como cuidados com a saúde e reflexões filosóficas, sociais e ambientais.
Mas há um pequeno detalhe em não comer carne que me intriga e já me faz pensar bastante. Por que algumas pessoas se incomodam com isso? Por que às vezes não comer carne parece uma afronta a quem come, por que essa decisão gera tanto questionamento? Nunca fiz propaganda nem panfletagem sobre ser vegetariano, nem qualquer tipo de crítica sobre o que o outro come ou deixar de comer, mas quando não como, ou quando falam que sou vegetariano, quase sempre ouço alguns mesmos comentários.
Não sei os motivos particulares dos que se incomodam com isso, mas há um simbolismo no comer que faz sentido para mim. Quando nos reunimos para uma refeição há algo mais importante acontecendo do que o apenas matar a fome. Falo isso partindo da minha experiência de descendente de italiano, onde a mesa cheia é o centro de tudo. Comer junto é compartilhar o mesmo alimento, é dividir a mesma fonte que vai nos estruturar, que vai nos constituir. Nada mais óbvio: tornamos-nos aquilo que comemos, meu corpo será amanhã o que como hoje. Quando não compartilho um alimento que vários comem, estou recusando me tornar aquele alimento, estou recusando me tornar igual. Realmente isso pode ser uma afronta para alguns. É algo parecido com o uso de drogas em grupo, é uma verdadeira auto-exclusão dizer não para o que está sendo compartilhado, seja álcool, maconha, cocaína, ou qualquer outra coisa.
 No dia-a-dia prefiro continuar a passar despercebido em não comer carne, acho até dispensável o rótulo vegetariano, haja vista que ele mais gera separação do que aproximação.