10 de jun. de 2015

A benção de ser sem noção


       Numa terça feira cedinho eu indo de bicicleta dar aula. Mudei meu trajeto rotineiro e passo em frente a um parque, onde algumas pessoas estão caminhando e se exercitando em aparelhos. O dia está lindo, céu azul e ar frio, apesar do sol brilhando. Enquanto vou passando pelo parque e observando suas árvores, acabo acompanhando com o olhar o voo de uma ave, talvez um pequeno gavião, cortando o fundo da minha paisagem.

       Por instantes voei com ela. Por instantes fluí pela leveza e amplidão do espaço aberto e ilimitado. Por instantes não era um professor de Yoga indo dar aula, não era um psicólogo que depois de dar aula teria um dia cheio no consultório. Por instantes não estava em uma terça feira de início de mês no auge dos quarenta e pouco anos. Por instantes não havia a menor preocupação com o que havia atrás de mim, com o que me aconteceu no passado, e nem com o que haveria pela frente, no caminho futuro. Por instantes não estava indo para lugar nenhum. Por instantes estar em Taubaté não fazia a menor diferença, assim como saber ou não saber algo sobre alguma coisa. Por instantes não era mais o Marcos que estava ali. Por alguns instantes eu não encontrava-me  restrito nas habituais perspectivas sobre quem sou.

       Por instantes, pois logo aterrizei. Perdi o contato com a ave e voltei a sentir o pedalar da bicicleta. Era terça feira, estava na minha hora e lembrei que precisava mandar arrumar o carro. Em instantes o Marcos estava ali novamente, intacto, pedalando e arquitetando o que e como fazer pequenas e importantes coisas do dia a dia. Mas, por instantes, perdi a noção de quem era, larguei a bagagem e me senti muito bem.

     Compartilho essa experiência para comentar sobre seu significado à partir de algumas possíveis repostas para a pergunta: o que foi isso que aconteceu? Um momento de devaneio? Um pequeno surto dissociativo? Uma “viagem” sem drogas? Uma fuga da realidade? Uma experiência estranha, que por sorte passou logo e que deve ser esquecida? Apenas mais uma dessas coisas meio esquisitas e que não levam a nada e que só acontece com quem vive no mundo da lua? Todos essas respostas podem ser dadas pelo senso comum e também, infelizmente, por boa parte do mundo psiquiátrico e psicológico. Todas elas acabam por descaracterizar e desconsiderar a valiosa experiência de largar a bagagem. Há nelas o entendimento de que houve uma ruptura indesejada e possivelmente patológica e comprometedora. Nossa bagagem é fundamental e deve ser muito bem cuidada e protegida, devemos estar sempre com ela. Mexer com a perspectiva sobre quem somos é, de alguma forma, coisa de louco.

        A bagagem é essa forte noção que temos sobre quem somos, algo tão óbvio que passa despercebido. Os instantes em que voei foram exatamente os instantes em que minha noção de tempo e de espaço não estavam presentes, embora eu estivesse presente (e muito bem, por sinal). Minha presença se deu em outra forma, sem o peso da bagagem que, a partir de meu passado e da consideração pelo meu futuro, determina meu o presente. No voo não havia a noção de encadeamento dos dias, como o de estar numa terça feira e assim já estar automaticamente disposto na condição de ter ainda três dias de trabalho pela frente para chegar no sábado. Era também irrelevante o que tinha para fazer em meus e papéis profissionais e se daria conta disso. Todos esses conteúdos são a própria bagagem que carregamos e que deixa o caminhar mais pesado e repleto de condições já previamente impostas.

        A bagagem é um fato e uma condição humana e ponto. Não há nada de errado com ela. A questão é a limitação e o sofrimento que a identificação com ela nos traz. Esse é um saber que mestres de diferentes tradições milenares apontam sem a menor hesitação: não somos nossa bagagem! Somos algo além da noção que temos sobre nós mesmos. E dizem mais, que essa não é uma experiência restrita, especial e exclusiva de e para ninguém. 

       Quantas vezes você já não largou a bagagem? Quantas vezes já não foi além da noção de quem era? Quantas vezes já não voou? Talvez no calor do envolvimento com a arte ou a religião, em uma brincadeira, no amor, na dor, no contato com a morte, numa situação limite, talvez espontaneamente, e talvez até praticando Yoga e meditação. Pode ser que esses instantes apenas tenham passados despercebidos, ou, quem sabe, tenham sido entendidos inadequadamente como uma falha em deixar cair a bagagem.  

Marcos Taschetto



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