23 de abr. de 2017

Yoga, meditação e as práticas integrativas no SUS





             No ultimo dia 28 de março o Ministério da Saúde incluiu 14 novas práticas integrativas como opção para os usuários do SUS, entre elas estão o yoga e a meditação. Esta lista de práticas, que já disponibilizava para o usuário os cuidados da homeopatia, fitoterapia, medicina tradicional chinesa, antroposofia e termalismo, foi enriquecida agora com yoga, meditação, reiki, ayurveda, shantala, biodança, dança circular, arteterapia, musicoterapia, naturopatia, osteopatia, quiropraxia, reflexoterapia e terapia comunitária. Essa proposta de inclusão de práticas integrativas já vem ocorrendo no SUS desde 2006 com a implantação do Programa Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), programa que insere-se como um desdobramento da anterior Política Nacional de Humanização (PNH). Esse movimento é um esforço do Ministério da Saúde, e dos profissionais da saúde, para rever e ampliar os clássicos conceitos sobre saúde, doença e cuidados com o paciente, e a inclusão de práticas e saberes milenares não ocorre por acaso, haja visto a perspectiva profundamente integradora que essas abordagens apresentam. Intenciona-se assim diminuir custos com internações, procedimentos e medicações, além de despertar no paciente a noção de responsabilidade por seu tratamento e cuidados com a saúde não apenas no aspecto físico, mas também no emocional, social e espiritual. Mais do que o tratamento de sintomas, essa proposta busca a prevenção e a promoção da saúde integral dos sujeitos.

        A inclusão do Yoga e da meditação entre várias outras milenares práticas integrativas no SUS é motivo de comemoração, pois estas duas práticas, intimamente envolvidas entre si, são recursos simples e acessíveis e produzem efeitos realmente transformadores em seus praticantes, dados que se confirmam cada vez em maior escala por pesquisas científicas. E esse é exatamente um dos motivos da comemoração, pois com a inclusão oficial no programa oferecido pelo SUS essas práticas acabarão ganhando maior enfoque das pesquisas e estudos nacionais (pelo menos é o que se espera!). A própria nomeação utilizada já expressa esse novo status, de práticas alternativas (algo exóticas e ou marginais) para práticas integrativas e complementares (recursos válidos e em igualdade e parceria com os hegemônicos). Esse reconhecimento só ocorre após estudos e pesquisas sobre os efeitos dessas práticas, que ganham assim legitimidade dentro do universo da saúde, ou seja, passam a estar mais presente em clinicas, hospitais, ambulatórios...

            Porém, o mesmo motivo de comemoração é também motivo de cautela, pois o yoga, assim como as demais práticas e saberes tradicionais, não precisa e nem deve ser abordado apenas após “aprovação” e “versão” científica, situação essa que pode produzir descaracterizações e profundo encolhimento das intenções originais. Assim, yoga e meditação podem ser utilizados como recursos terapêuticos para a recuperação e prevenção de variados distúrbios físico emocionais, como ferramentas para o bem estar e a melhoria na qualidade de vida. Pode-se, por exemplo, conseguir ótimos resultados no tratamento de casos de insônia sem o uso de medicações. Isso é muito desejável e que cada vez mais pessoas possam ter acesso e desfrutar desses cuidados, mas vale lembrar que as intenções do yoga vão bem além do que entendemos como bem estar e qualidade de vida. Por limitação de paradigma, e consequentemente de pesquisa, são justamente essas intenções “além” que ficam fora da maior parte dos estudos, e que acabam sendo diluídas e suprimidas nas práticas mais focadas no bem estar e alívio de sintomas. Pode-se dizer que esta seria uma nova versão do yoga contemporâneo, talvez mais adaptada e adequada ao público urbano ocidental. Ao mesmo tempo, é nessa forma de prática que muitos descobrem as intenções reais do yoga e da meditação, descortinando quase que sem querer um novo modo de entender a si mesmo e a vida. Comigo também foi assim. Chega-se procurando alívio para uma dor de cabeça e encontra um caminho para a alma...


         Boas vindas às diversas práticas integrativas e seus respectivos profissionais! Há muito trabalho a ser feito, há muito o que aprender e oferecer. Saudações e boas vindas aos saberes tradicionais e seus milenares caminhos de luz! Que cada vez mais seres possam encontrar nesses caminhos os benefícios que precisam e desejam. Que todos possamos desfrutar da saúde integral!

Marcos Taschetto



12 de mar. de 2017

Yoga, uma janela para si mesmo e uma janela para o outro


              
              Há alguns anos, talvez uns dez, recebi um adolescente para psicoterapia. Ele era grandalhão e introspectivo e tinha uma expressão que mesclava tristeza, amorosidade e curiosidade. Após algumas sessões, que me pareceram pouco produtivas, me vi no meio de uma sessão especialmente difícil, onde ele praticamente nada falou. Seu silêncio foi me deixando bastante desconfortável e quando me dei conta estava pressionando-o com inúmeras e insistentes perguntas, numa vã tentativa de achar qualquer gancho para uma conversa. Para cada pergunta minha uma resposta monossilábica dele. Minha fala era puramente especulativa, interrogatória na verdade, e buscava descobrir uma lógica para explicar alguns de seus comportamentos. Imagino que devo ter sido uma companhia bem inconveniente para ele naquele momento. Ao perceber que meu ataque “terapêutico” só contribuía para afastar qualquer possibilidade de diálogo e aproximação com ele, desisti de tentar qualquer coisa e também fiquei em silêncio. Porém meu silêncio era de um perdedor, de quem foi incapaz de dar conta de sua tarefa. Ficamos alguns minutos assim, ele no seu mundo e eu no meu, até que o gancho e a abertura para um verdadeiro diálogo surgiu.                                            

       Minha sala tinha uma janela para o quintal com algumas árvores que sempre recebiam a visita de passarinhos. Enquanto estávamos em silêncio percebi o momento em que seus olhos ascenderam-se quando ele avistou algo lá. Era um sanhaço. E assim a mágica se deu! Ele amava animais, em especial pássaros, e após ver o sanhaço começou a me contar um pouco do que sabia sobre eles e das muitas experiências que teve com animais na roça da família. Ele se abriu sem o menor esforço ao me falar do que mais amava. Era quase inacreditável que estávamos ainda na mesma sessão. Nas sessões posteriores trabalhamos vários conteúdos que ele trouxe espontaneamente e continuamos por mais uns três meses. Paramos nas férias e depois não tive mais contato com ele. Um ano depois recebi uma mãe querendo psicoterapia para o filho, ela me procurou por ter percebido uma grande mudança no filho de sua amiga, o adolescente do sanhaço.

         Essa sessão me marcou bastante e eu ainda hoje me emociono ao me lembrar da pulsação de vida e abertura do meu paciente após a visita do sanhaço. A partir dela fiz algumas reflexões que me trouxeram esclarecimentos que considero bastante importantes, entre eles:

  • o valor da capacidade de silenciar, escutar e esperar o tempo do outro ou da situação se desenvolver;
  • reconhecer que posso facilmente atropelar o outro com minha ansiedade, minhas necessidades e especulações mentais sobre como as coisas deveriam ser; 
  • a existência de muitos iniciadores e muitas variáveis, sendo várias consideradas improváveis, envolvidas no processo de transformação das pessoas;
  • reconhecer que nunca sei ou saberei exatamente o potencial que o outro traz dentro de si, podendo na melhor das hipóteses fazer apenas uma ideia sobre;
  • o que entendo como desistência, fim, fracasso ou perda pode ser na verdade o começo para algo que não estava nos meus planos;
  • muito dos importantes aspectos da transformação do outro, e da minha própria transformação pessoal, não dependem do meu esforço e da minha intenção, mas da minha abertura e apoio.

      Esses esclarecimentos se relacionam não apenas com o contexto da psicoterapia, mas associam-se diretamente com o desenrolar de nossas experiências e relações na vida cotidiana. Mais ainda, relacionam-se intimamente com a prática da meditação e os princípios do Yoga, ao evidenciar a grande participação e influência que nossas imagens, padrões e conclusões mentais exercem sobre todas as nossas atitudes, incluindo as envolvidas na comunicação e contato com os outros. Assim, é válido afirmar que a prática de meditação e Yoga contribuem em muito para melhorar, ampliar e aprofundar o potencial de comunicação com nosso mundo interno e com todos aqueles com quem nos relacionamos.            
             
           
          Foi considerando a riqueza e importância dessa relação entre a prática da meditação e a comunicação humana que elaborei o workshop “Aprimorando a comunicação – uma ponte com a meditação”. Nele exploraremos, de forma direta e vivencial, um pouco da capacidade de nos comunicar com o outro e com nosso próprio mundo interno pela perspectiva inclusiva e aberta da meditação. 


Marcos Taschetto



1 de mar. de 2017

Indo um pouco além


    

       A Quarta-feira de Cinzas demarca o início da Quaresma, período de mais de quarenta dias em que os católicos se preparam para a Páscoa. Para essa preparação são sugeridos momentos de reflexão, interiorização, oração e penitência. Essas são práticas conhecidas e utilizadas há milhares de anos pela espiritualidade e religiosidade universal. O devoto deve se propor a experimentar períodos de algum isolamento para confrontar-se consigo mesmo e com seus limites através de algumas práticas introspectivas. Tradicionalmente essa proposta está associada à atitude por vezes extremas e severas de ascese e purificação, partindo do princípio de que algo errado e pecaminoso precisa ser expurgado. 

          Nos primórdios do Yoga, antes ainda de ser chamado de Yoga, essa prática era conhecida como tapas, palavra que significa torna-se ardente, luminoso, radiante. Tapas é também um dos dez princípios éticos do Yoga e sua tradução é algo como auto superação ou auto esforço. No Yoga milenar a atitude de tapas associou-se fortemente com a prática de austeridade, que facilmente pode ganhar pitadas de auto agressão e punição impostas ao corpo e suas necessidades básicas. A questão mais importante não está na prática de tapas em si, que entendo ser essencial para a maturidade e desenvolvimento humano, mas na prévia consideração moral de que algo errado precisa ser punido e corrigido. Se tapas não for encarado como punição, pode ser então aproveitado como valioso instrumento de libertação.

       Essa proposta não precisa ser um exercício heroico e espetacular, nem associar-se ao sofrimento ou a quebrar grandes barreiras de uma só vez. Basta um pequeno novo combinado consigo mesmo para algo de novo já acontecer. Tapas é um convite para aproximar-nos daquilo que a rotina e as exigências do dia a dia nos afastam, a percepção sobre quem somos e como estamos. É um recurso que se bem aproveitado, ascende nossa luz e calor.  

        O mecanismo é simples, combine consigo mesmo uma pequena frustração e a cumpra. Só isso, uma frustração auto imposta. É como você criar uma nova regra para um jogo que perdeu a graça por ter ficado previsível e sem desafios. Qual a função dessa nova regra?  Recriar e reanimar o jogo, pedindo de você mais atenção, dedicação e respostas novas. Tapas é uma nova regra no jogo rotineiro da nossa vida diária, jogo que nos consome e engole, e não uma pena a ser cumprida. Tapas sem punição, sem penitência (apesar do significado da palavra tapas em português casar muito bem com a ideia de punição). Essa nova regra pode ser deixar de fazer ou passar a fazer algo, seja no âmbito mental, emocional ou comportamental. O que gera transformação é manter o combinado e observar o que acontece quando passamos por essa frustração auto imposta, quando sustentamos frustrar nosso próprio desejo.    

                 Boa Quaresma e bom tapas para todos nós!

Marcos Taschetto



24 de jul. de 2016

Minha filha e as nossas mudanças




      Minha filha está aproveitando suas férias escolares para se dedicar prazerosamente e inteiramente a duas “tarefas”: brincar de bonecas com a prima e fazer uma grande mudança em todas as suas coisas. Começou escolhendo alguns desenhos e fotos que “tenham mais haver” com ela para montar novos quadros. Abriu seus dois baús e está fazendo uma faxina geral, selecionado o que vai doar, o que vai para o lixo e que vai guardar. Já fez também um novo projeto para o layout do quarto, que passará agora a não será mais tão infantil, ganhando alguns detalhes mais jovens e descolados. Mas dentro de todo esse movimento de mudança, que apoio e me encorajo também a fazer, uma situação em especial me tocou. Minha filha separou algumas bonecas para doar e entre elas estava a “Moritas”, sua boneca preferida ao longo de vários anos, sua primeira grande companheira de brincadeiras.

           Para quem é pai ou mãe sabe o que significa ver sua filha/o crescer. Ela está agora com dez anos e claramente está se despedindo da infância, e isso me provoca um sentimento ambíguo de felicidade e tristeza. Felicidade de vê-la construindo seu caminho, descobrindo seu jeito, se organizando, se preparando para muitas futuras aventuras e experimentando sua independência. Tristeza pelo gosto de despedida que essas mudanças trazem. A pequena está crescendo e todo um mundo está ficando para traz, um mundo que não volta mais, que por sinal seria trágico e patológico se permanecesse intacto. O espaço que vai se abrindo agora são para lembranças. Diante desse quadro fico eu nesse lugar estranho de ter um sorriso no rosto e um aperto no peito. Incentivo sua faxina e ao mesmo tempo questiono se precisa se desfazer de tudo assim de uma vez. Quase como se minha mão direita a ajudasse a fazer suas mudanças enquanto a mão esquerda, sorrateiramente, a segurasse. Lugar por vezes desconfortável esse de se estar diante e dentro da mudança.

       A mudança das situações é algo tão óbvio, certo, irrevogável, inquestionável e previsível que era de se esperar que soubéssemos lidar muito bem com isso. A natureza toda se expressa pela mudança contínua e em fluxo, em permanente impermanência. Tudo se relaciona permeado pela mudança, pelo jogo de idas e vindas, de alternância entre o que nasce e o que morre. Temos o nosso critério humano de tempo, que nos diz que minha filha com seus dez anos está no começo da vida e eu, com meus quarenta e cinco, já encontro-me no meio dela. Essa nossa referência nos faz pensar que um mosquito vive pouco e que uma montanha ou uma pedra são eternas. Essa noção temporal nos ilude, sugerindo que algumas coisas são fugazes e outras são indiferentes à passagem do tempo, nos enganamos com a ideia de que há o que não muda. É só uma questão de ponto de vista e de tempo. A mudança pulsa em ritmos diferentes, mas não poupa nada nem ninguém.

        Mas o que nos faz resistir à mudança? Por que sofremos com algumas mudanças? O que nos mantém empacados e freando o fluxo? Esse lugar desconfortável diante da mudança relaciona-se diretamente com nossos projetos e expectativas, com a nossa necessidade de controle e nosso apego. É claro que contamos com as mudanças, mas sempre com aquelas mudanças que desejamos, que planejamos, que estão de acordo com nossos planos. Nos abrimos mais facilmente para as mudanças das quais sabemos algo, que imaginamos estar preparados e que resultarão em nosso fortalecimento. Encaramos bem as mudanças onde temos algum controle, onde nossa noção de poder pessoal não seja afetada. Porém o fluxo das mudanças da vida não segue esse nosso roteiro, é indiferente à essa nossa necessidade de segurança, as mudanças simplesmente se dão, e então, fazemos o que podemos. 


            Algumas  mudanças podem vir como rasteiras que nos desestabilizam e nos jogam na correnteza do fluxo da vida, correnteza que não nos fornece nenhum roteiro antecipado do que virá. Nesse momento, se formos sinceros, é bem capaz que encontremos apenas a sensação interna de não saber, de não ter controle, de não ter respostas claras. Geralmente lutamos contra essa sensação, nos esforçando e resistindo para direcionar a mudança. Porém esse é um momento valioso, pois se há o desconforto e a ameaça da mudança, há também, justamente no cerne dessa situação, a oportunidade de nos abrirmos ao que está além do nosso umbigo.


         Mudanças podem ser vivenciadas como convites para lidarmos com alguns sentimentos fundamentais para o amadurecimento, tais como apego, frustração, impotência, solidão, medo, perda, surpresa, criatividade, renovação, abertura, entrega, confiança.... Passar por mudanças é uma real oportunidade de conhecer novos aspectos sobre nós mesmos, que necessariamente ainda não conhecemos.

Marcos Taschetto

4 de jun. de 2016

A meditação e o desapego



         O yoga é uma prática milenar sustentada em alguns princípios fundamentais comuns a várias correntes da espiritualidade universal. Entre esses o desapego (vairagya) é um central. Desapego é um conceito que pode ser facilmente associado ao ato de largar bens materiais, de despojar-se de confortos, vaidades e de todo e qualquer tipo de posses. Sim, o desapego pode ser compreendido por esse viés, que se cristaliza na figura emblemática do sadhu, aquele adepto hindu que renunciou aos jogos da sociedade e do mundo. Ele vive nu, sem moradia, sem pertences, sem nenhum vínculo social, a não ser o de ser um sadhu, um homem santo cujo papel social ocupa um lugar de admiração e destaque dentro da cultura hindu. 

          Entretanto, nesse ato de renúncia do sadhu há um ponto curioso, pois ele na verdade faz uma troca de papéis, quando abandona um status para assumir outro, que por sinal, é considerado mais elevado que o anterior. Agora ele não é mais um homem comum, do mundo, ele tornou-se um comprometido com a busca espiritual, ele está mais próximo do divino, daquilo que os simples mortais ainda precisarão de muito esforço para alcançar. Desapegou-se de uma condição e apegou-se a outra, largou uma roupa e vestiu outra, mais sutil, mais sedutora. Essa contradição da troca de apegos, anunciada como desapego, pode ser observada em qualquer outra prática de religiosidade e/ou espiritualidade.

          No yoga desapego não é sinônimo de não ter bens, de não possuir nada material, ou muito pouco, a direção é outra, busca-se algo mais consistente do que medir a quantidade de coisas que se carrega pela vida. A questão principal do desapego está na relação que estabelecemos com aquilo que desejamos. Não se trata sequer de não desejar, mas sim do como conduzimos o nosso desejo. Na definição clássica de Patanjali, desapego é a capacidade de não desejar aquilo que é visto ou descrito. Há o desejo que surge do nosso contato com os estímulos do mundo, porém, e esse é o ponto fundamental, ele é percebido por uma presença interna que observa e nos permite não responde automaticamente ao pedido do desejo. Desapego é essa habilidade de não reagir de forma impulsiva e identificatória com o pedido feito pelo desejo. O desejo aparece, e seguindo seu fluxo, desaparece, e assim será substituído por outro, e outro, e outro, e assim eternamente. O desejo passa, entretanto, a presença fica.

       Fica fácil perceber e sentir esse processo durante um passeio por qualquer shopping, ou enquanto assistimos TV ou navegamos pela internet, o tempo todo somos estimulados a desejar muito. Se nos identificamos com esse desejo haverá empenho e investimento para realizá-lo, precisamos fazer isso, afinal de contas somos esse desejo. Neste ponto já estamos apegados ao desejo, já o seguramos firmemente nas mãos. No caso do shopping, o resultado objetivo será quase sempre a compra compulsiva do mesmo desnecessário de sempre, enquanto o resultado subjetivo pode ser sentido como uma constate e insaciável insatisfação, que se expressa na espera ansiosa por segurar firmemente nas mãos as próximas sacolas de compras.

        O yoga caminha na contramão desse nosso movimento de apego, quando apresenta meios para que desenvolvamos a capacidade de desapego. O mais interessante é que esse desenvolvimento não precisa ser necessariamente algo conceitual, o que é bom, pois diminui o risco de o desapego se tornar apenas um discurso filosófico e estéril. Dentro das muitas técnicas do yoga, a meditação é a que por excelência desenvolve a prática do desapego. Mas de que forma isso ocorre? O mecanismo básico de toda e qualquer técnica meditativa é a observação de um foco específico, seja ele qual for. Durante a prática da meditação esse foco deve ser mantido, e quando perdido, o que certamente ocorrerá, retornamos à ele, abandonando-se assim aquela distração que nos desviou do foco proposto. Muitas vezes o conteúdo dessa distração é algo banal e desprovido de valor, coisa fácil de renunciar, mas muitas vezes, e é bem aqui que se encontram algumas armadilhas do caminho pela meditação, esses conteúdos são intensos e percebidos como valiosos e importantes, há neles muito desejo investido. De repente lembranças distantes e significativas vêm à mente, um forte colorido emocional é liberado, grandes insights sobre a vida surgem, visões, sensações, e coisas do tipo apresentam-se vividamente no palco da consciência. Conteúdos encantadores que abraçamos e queremos segurar firmemente nas mãos, experiências com as quais nos identificamos e nos apegamos, tal com os produtos expostos na vitrine atraente e chique do shopping. O que fazer então? Praticar o desapego, a renúncia, o abandono, largando o encanto da distração e voltando ao foco combinado. Prática de desapego das experiências internas, daquilo que desejamos como nossa identidade e como nosso ideal, prática de meditação, cultivo do estado meditativo.

         Interessante que esse aspecto tão profundo e transformador ganhou uma definição bem objetiva e dentro dos critérios da pesquisa científica através do trabalho do pesquisador, médico e professor de meditação Roberto Cardoso. Ele propôs uma definição operacional para a prática da meditação, onde necessariamente precisa ocorrer, entre outros aspectos, o foco da atenção em uma âncora e o relaxamento da lógica. Relaxar a lógica é não alimentar as infinitas associações de pensamentos, onde um leva a outro, que se associa a outro, a outro, e assim vai. Relaxar a lógica é praticar o desapego, é renunciar a esse grande prazer que temos de ficar pensando, desejando, pensando, desejando, pensando... Prática essa que não está restrita aos sadhus hindus e nem carece de nenhuma atitude radical, mas que pode ser experimentada na própria pele com apenas um pouco da atenção em si mesmo.   

Marcos Taschetto

6 de mar. de 2016

Esqueça a neurociência



   Recentemente assisti a um simpático vídeo promocional sobre o trabalho de coach fundamentado na neurociência. Nele são apresentadas justificativas para que cultivemos a atitude de gratidão. Quem já experimentou sabe que a gratidão é um profundo sentimento que abre muitas portas, que nos permite novas formas de relacionamento conosco mesmos, com os outros, com nossas experiências e com a vida em geral. A gratidão aparece nas religiões e em muitas tradições da espiritualidade como uma chave para a abertura do coração e um dos meios de acessos a transformações pessoais e ao divino, e, juntamente com a compaixão e o amor, é um dos sentimentos essenciais que pode e deve ser cultivado na subjetividade do praticante. A gratidão dissolve a noção de individualidade e a percepção egóica de se estar à parte da criação.
      Mas o que me importou mesmo nesse vídeo foi a justificativa dada para se falar da gratidão. Deixou-se bem claro de que isso nada tinha haver com religiosidade ou fé, pelo contrário, era algo respaldado pelas ultimas descobertas da neurociência. Após essa importante ressalva o vídeo adverte que devemos sempre tomar decisões neurologicamente corretas, e então apresenta alguns esquemas sobre o funcionamento cerebral, explicando como determinada substância é inibida ou produzida no cérebro e de como isso promove ou não determinados sentimentos. Expõe-se um didático raio-x da fisiologia da gratidão. A neurociência explica a química que produz nossas emoções e demais experiências subjetivas, e ela nos mostra as provas desses dados em imagens ao vivo e a cores. Realmente é um avanço extraordinário que permite a compreensão de muitas questões comportamentais, patológicas e não patológicas, assim como abrir novas perspectivas para o que já se sabia. Atualmente o clássico bordão “Freud explica” parece estar dando a vez para o “a neurociência explica”.
      O vídeo pareceu ter me autorizado a cultivar a gratidão (autorização mais significativa ainda caso eu fosse alguém do mundo corporativo, público aparente do vídeo), e mais do que isso, me explicou de forma simples e acessível como ela funciona e como ela é benéfica e importante para que eu seja feliz. Acho louvável um sentimento como esse ser tema de aulas, de estudos, explicações e treinamentos. A humanidade agradece por isso, pois todos nos precisamos e nos beneficiamos do sentir-se grato.
    Mas faço esse comentário sobre o vídeo da neurociência apenas para fazer uma observação: as informações da neurociência sobre como o cérebro funciona e de como as reações químicas das emoções acontecem não fazem a menor diferença para a nossa experiência direta e pessoal. Nenhuma, nenhuma, nenhuma. Saber a neuroquímica da gratidão não nos faz senti-la, assim como ler um cardápio não nos sacia, embora provoque nossa imaginação e estimule respostas fisiológicas. Saber sobre a fisiologia cerebral a respeito da gratidão, ou da depressão, não interfere em nada em nossa experiência pessoal e intransferível de estar grato ou deprimido.
       Hoje em dia não é difícil encontrar pessoas que se autodiagnosticam como depressivas, e que, além disso, oferecem-nos explicações sobre as causas da própria doença dizendo que é por falta de uma substância no cérebro. Também é cada vez mais frequente pessoas se interessarem e praticarem Yoga e/ou meditação com a justificativa de que essas são atividades com comprovados efeitos benéficos para o funcionamento do cérebro e de todo sistema nervoso. 
    Ao longo dos últimos anos a meditação tem recebido significativa atenção por parte da neurociência através de diversos estudos que explicam e ampliam a compreensão de como ela realmente funciona. Isso é promissor e bastante louvável, tão bom quanto os estudos sobre a gratidão, mas não podemos confundir essas informações sobre a meditação com a meditação e nem o entendimento da fisiologia da gratidão com a gratidão. A imagem mental sobre a gratidão não é a emoção gratidão, o entendimento mental do que é meditação não é o estado meditativo. Nesse sentido, essas informações sobre, a respeito de, podem levantar muita poeira mental e embaraçar o acesso à experiência direta de meditar, ou de sentir-se grato.       O que a gratidão ou a meditação podem nos oferecer vai muito além das sinapses e dos limites do cérebro, mas esse além precisa ser vivido na pele, não pode ser apenas um conteúdo intelectual. Na verdade a meditação e a gratidão vão além do conteúdo mental, e o seu grande valor é exatamente esse, possibilitar a transcendência do nível mental e racional de consciência.
      Que os estudos e as descobertas da neurociência continuem, e que essas informações possam orientar novas propostas de políticas e estratégias de clinicas, hospitais, universidades, empresas, escolas, governos e da sociedade em geral. Mas quando você for meditar, esqueça a neurociência e todos os benefícios comprovados da meditação. Quando for para a vida, para a experiência imediata de sentir (que é quando a vida vale à pena) esqueça a neurociência e seus esquemas. Mais do que isso, esqueça principalmente quem, ou aquilo, que você supõem ser.

Marcos Taschetto


20 de fev. de 2016

Yoga e Psicologia

No ano de 2015 o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo realizou quatro seminários sobre as relações entre a psicologia, laicidade e os saberes tradicionais. Uma valorosa iniciativa para ampliar e enriquecer o entendimento e a atuação da psicologia no Brasil. 
No terceiro seminário apresentei este texto sobre a proximidade entre a psicologia e o yoga. 
   

YOGA E PSICOLOGIA: TRADIÇÃO E CIÊNCIA E A MENTE COMO PONTE
Marcos Fioravanti Taschetto


Resumo O objetivo desde texto é apontar para uma aproximação entre um saber tradicional, o yoga, e o saber científico psicológico. Após um breve histórico do yoga, de seus primórdios até os dias atuais, são apresentados alguns de seus fundamentos e a indicação de possíveis relações destes com a atual psicologia.

Breve definição e histórico de uma tradição viva

Definir o yoga é uma tarefa complexa, considerando sua vasta história e sua multiplicidade de expressões e práticas. De acordo com Feuerstein (2005b) o yoga é uma corrente de espiritualidade que está enraizada e presente nas práticas do hinduísmo, budismo, jainismo e sikhismo, embora não se confunda ou se limite a nenhuma dessas tradições religiosas.

Eliade (1996) ressalta que a metafísica indiana compreende a condição humana como essencialmente vinculada ao sofrimento, entretanto essa constatação não gerou filosofias com perspectivas pessimistas ou desesperançosas, mas sim propostas de salvação e liberação desse sofrer inerente ao humano. O yoga, dentro dessa metafísica, é entendido como a soma dos caminhos e meios técnicos para se atingir a liberação desse sofrimento. O termo yoga é derivado da raiz sânscrita yuj, “ligar”, “manter unido”, “atrelar” e serve em geral para designar toda técnica de ascese e métodos de meditação. Esse conjunto de práticas não formou um todo homogêneo, pelo contrário, elas foram ganhando distintas expressões nas múltiplas correntes e movimentos místicos indianos, existindo assim numerosas formas de yoga. Entre elas destaca-se o “yoga clássico” elaborado por Patanjali, um sistema que se tornou referência para a definição, compreensão e localização do yoga dentro da ampla e diversificada espiritualidade indiana.

As origens do yoga perdem-se no tempo. Teve sua origem nas culturas do subcontinente indiano e lá vem se amalgamando e se desenvolvendo ao longo dos últimos cinco mil anos. Eliade (1996) relaciona vários aspectos da ancestral cultura aborígene e xamânica indiana com o posterior desenvolvimento das práticas e técnicas do yoga. Rudimentos do que viria a se estabelecer como yoga já estão presentes também nos Vedas, conjunto de escrituras que estruturam todos os aspectos da cultura hindu. Posteriormente, com os Upanishads, o yoga começa e se definir como uma prática de meditação voltada para a libertação do sofrimento humano. Por volta do século II d.C. as muitas práticas e saberes existentes na época foram sistematizados pelo sábio Patanjali no seu tratado Yoga sutra. Com esse texto Patanjali consegue estabelecer o yoga como uma filosofia reconhecida e estruturada, que passa a ser considerada então como um dos seis pontos de vista (darshana) do hinduísmo ortodoxo.

No decorrer desse processo histórico o yoga acabou por desenvolver diferentes metodologias para atingir a sua meta, o fim do sofrimento, e entre elas destacam-se o próprio yoga proposto por Patanjali, o yoga-real (Raja-yoga), assim como o yoga devocional (Bhakti-yoga), o yoga da sabedoria (Jnana-yoga), o yoga da ação (Karma-yoga), o yoga dos sons poderosos (Mantra-yoga), o yoga da força (Hatha-yoga), entre outros. Este último e mais recente ramo de yoga, o hatha, surgiu no período medieval e foi fruto do movimento tântrico, passando a incluir e abordar em suas práticas a dimensão corporal, presente nas técnicas de posturas corporais (asana) e nos exercícios de controle respiratório (pranayama), entre muitas outras técnicas mais sutis.

Broad (2013) descreve os momentos iniciais do que é considerado o yoga moderno através de alguns eventos isolados, mas que acabaram se somando e dando novo impulso, vigor e direção à prática milenar. Um importante detalhe dessa nova etapa de desenvolvimento do yoga é a sua relação com o a cultura ocidental, algo inédito até então. Em 1924 J. Gune funda na Índia uma escola e centro de estudos e pesquisas científicas sobre o yoga e seus efeitos positivos na saúde. A partir de 1931, o professor de sânscrito e yoga T. Krishnamacharya passa a ensinar seu estilo de posturas em sequência associadas a questões de saúde. Ele percorrer boa parte da Índia fazendo demonstrações das posturas, e teve entre seus discípulos quatro dos grandes responsáveis pela propagação do estilo hatha-yoga por todo o mundo: B.K.S. Iyengar, Pattabhi Jois, T.K.V. Desikachar e Indra Devi. Vale lembrar que esse hatha-yoga moderno, que se popularizou e ganhou o mundo, é uma versão mais limpa e acessível do yoga tântrico. Ele passou por uma “repaginação”, onde alguns aspectos da filosofia e da cultura hindu foram suavizados, tais como o ascetismo e o misticismo de libertação, e outros aspectos mais ocidentais foram acrescentados, tais como os benefícios para a saúde, a conquista de relaxamento e bem estar, e as citações e associações da prática com a ciência médica.

Nos anos 60 o yoga e a meditação, assim como várias outras correntes orientais e tradicionais, ganham espaço e adesão entre a juventude através do movimento da Contracultura, e passaram a fazer parte das chamadas práticas alternativas. A partir dos anos 70 pesquisas científicas começam a esclarecem e a popularizar os benéficos efeitos fisiológicos da prática da meditação e do yoga. Gradativamente o yoga foi ganhando reconhecimento como uma prática segura e capaz de “melhorar o equilíbrio, reduzir a fadiga, diminuir a ansiedade, conter o estresse, melhorar o humor e o sono, reduzir a dor, baixar o colesterol e, de forma geral, melhorar a qualidade de vida” (Broad, 2013). Atualmente o yoga, além de ser praticado em todo o mundo em estúdios e academias, é indicado e aplicado em hospitais, clínicas, centros de reabilitação, entidades educacionais, em diversos órgãos e entidades públicas e privadas, e é uma das práticas que têm espaço na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) dentro do SUS.  

O saber tradicional

Em seu percurso histórico o yoga passou por muitas transformações e adaptações, tais como as que se evidenciam no contexto atual do yoga moderno. Diante desse fato, justifica-se a importância do resgate de seus fundamentos e diretrizes básicas. Os conceitos essenciais para a compreensão da prática e objetivos do yoga estão na definição dada por Patanjali logo no inicio do Yoga Sutra, onde temos:

 1.2 - Yoga é a contenção (niridhah) das flutuações (vrittis) da consciência (chitta)

 1.3 – Então, “Aquele que vê” (o Si Mesmo) estará situado em sua natureza real

1.4 - Em outros momentos (o Si Mesmo) conforma-se às flutuações (Feuerstein, 2005a)

No aforismo 1.2 Patanjali define yoga a partir do conceito chitta, termo traduzido como consciência, mais especificamente como mente ou campo mental, o palco onde se desenrolam as produções e conteúdos psicomentais. Uma característica fundamental de chitta é sua inconstância, pois sua natureza é de movimento e mudança constante. Este aspecto oscilante de chitta recebe o nome de vritti, as flutuações ou modificações da mente. O campo mental é entendido então como um palco onde as encenações, os dramas e os atores não param de se revezar e de atuar, ou seja, a mente não pára de produzir e alternar conteúdos mentais. Esses conteúdos, através de associações entre si, criam identificações e passam a ser determinantes para a percepção, o julgamento, o sentir e o agir do sujeito. A produção mental em cadeia cria assim a vivência de uma realidade interna pessoal que se mantém, uma noção de individualidade manifesta como um eu contínuo (asmita).

Se a mente apresenta-se como constante inconstância, sendo muitas vezes pura turbulência, Patanjali afirma então que yoga é a contenção, a restrição ou o recolhimento do fluxo desse constante movimento. Nirodhah é o controle das vrittis de chitta. Entretanto, esse controle não diz respeito à cessação do pensar ou à destruição da capacidade mental, mas aponta para uma experiência que está além dos conteúdos mentais e dos recursos do pensar. No aforismo 1.3 Patanjali descreve que com a contenção dos fluxos mentais “Aquele que Vê” se revela. Essa condição de testemunhar a experiência mental indica uma consciência diferente daquela de estar envolvida no fluxo mental, esta não é mais a condição de participante do fluxo e seus conteúdos, mas de observador deste. No samkhya, filosofia irmã do yoga, esse aspecto observador recebe o nome de purusha, que pode ser traduzido por homem, mas indicando seu princípio transcendente, o Si Mesmo, aquilo que está além das identificações corporais, emocionais e mentais. Yoga é a revelação de purusha, é o processo que leva o praticante identificado com sua natureza física, emocional e mental a poder vivenciar o ser testemunha de si, a estar como Si Mesmo. Portanto, longe de parar de pensar ou de limitar-se ao estabelecimento de estados de relaxamento mental, embora isso se dê inevitavelmente, a contenção das flutuações mentais mostra-se como um recurso que permite o acesso a uma nova identidade transcendente. No aforismo 1.4 Patanjali mostra que o estado ordinário de consciência é o de identificação com as variações mentais, onde “Aquele que Vê” encontra-se encoberto pela poeira da movimentação e turbulência mental. Este estado é de “não yoga”, de não união, estado em que se mantém o equívoco e a limitação da identidade mental, onde “eu sou o que penso que sou”.

Ao longo do Yoga Sutra são utilizados ainda os conceitos de impressões mentais (sanskara) e de impregnações latentes (vasana) referindo-se aos conteúdos inconscientes que produzem e mantém as identificações mentais. São descritos também diferentes processos mentais (klesa), diversos estados e níveis de consciência, como a concentração (dharana), a meditação (dhyana), os graus de êxtase do Si Mesmo (samadhi) e o estado de integração, transcendência e libertação final (kaivalyam), meta última de toda prática de yoga. Há ainda um capítulo quase que todo dedicado aos vários poderes psíquicos (siddhi) que a prática avançada pode despertar no praticante, assim como a descrição de dez princípios éticos fundamentais (yama e niyama), sem os quais a prática de técnicas torna-se não apenas superficial, mas também facilmente equivocada e prejudicial. Esses princípios não são utilizados como regras morais fechadas em si, mas como fonte de auto-observação, identificação e transformação de padrões de comportamento.

Relações

Após essa pequena, fragmentada e brevíssima exposição fica evidente que o yoga busca algo distinto da boa forma física, ou mesmo do relaxamento, da diminuição do stress e do bem estar, muito embora possibilite todos esses benefícios com qualidade. Para viabilizar a sua meta de liberação do sofrimento disponibiliza alguns recursos teóricos e práticos que o aproximam, profunda e intimamente, do que entendemos hoje como psicologia, principalmente da psicologia clínica em suas diversas abordagens. O yoga e a psicoterapia se alinham nesse preciso e típico momento humano, o de constatar o sofrimento e as limitações da própria condição e buscar um caminho de alívio, significação e salvação. Os meios para tal empreitada são múltiplos, assim como são as muitas linhas do yoga e da psicoterapia, porém, em todas elas, de alguma forma, há algum trabalho de transformação do aparelho psicomental. Apesar das divergências entre as muitas cartografias desse aparelho, e conseqüentes metodologias, o trabalho se dá através de algum aspecto dele, podendo ser este um ponto em comum entre yoga e psicoterapia, assim como a necessidade de que esse trabalho não seja uma especulação, mas sim experienciado em primeira pessoa.

Na relação entre yoga e psicologia nota-se também a proximidade existente entre algumas de suas práticas com determinadas escolas psicológicas, sendo possível fazer paralelos entre aspectos das práticas do yoga com algumas das escolas que compõem cada uma das quatro forças da psicologia. Nas abordagens humanistas e transpessoais, terceira e quarta forças, essa relação fica mais visível, quer seja pela visão de homem e de mundo, quer seja pelos métodos e técnicas adotados. Foco no aqui agora, reconhecimento da terapêutica dos diferentes estados de consciência, transformação psíquica pelo trabalho corporal, respiratório e energético, utilização de recursos como rituais e símbolos, abertura e interesse pelos potenciais humanos últimos e por conceitos como intuição, auto-realização felicidade, sentido da vida e transcendência, entre outros, são temas recorrentes nessas escolas e possuem paralelos no yoga, ou mesmo foram inspirados em seus fundamentos. Na primeira força, o behaviorismo, a busca da clareza e o controle dos processos mentais, cognitivos e comportamentais se assemelham aos percursos e resultados de algumas formas de meditação, e, por esse motivo mesmo, técnicas de meditação do tipo mindfulness vêm sido incorporadas entre seus recursos terapêuticos. Já na segunda força, a psicanálise, a ponte se faz na importância dos conteúdos e dos processos inconscientes que guardam grande força emocional e poder identificatório. Pode-se apontar também para o diálogo entre a experiência dos poderes psíquicos descritos, comuns em diversas práticas de espiritualidade e misticismo, com os estudos da psicologia Anomalística.

Por sua vez, através do conceito de identidade é possível fazer uma importante diferenciação entre esses dois saberes. Enquanto que o yoga tem como meta final a experiência da identidade última, aquela que está além de todas as identidades parciais e restritas da individualidade nos níveis biológico, psicológico e social, a psicologia tem como proposta e meio de intervenção a facilitação na diferenciação, reconhecimento e fortalecimento dessas mesmas identidades. Metas diferentes que podem encontrar, no momento atual, uma valiosa, inédita e necessária integração e complementaridade.

Conclusão  

O diálogo da psicologia com esse saber tradicional, yoga e meditação, pode ser uma rica oportunidade de questionamento e ampliação da psicologia sobre seu objeto de estudo, a psique, ao mesmo tempo em que esta mantém seu olhar, compreensão e intervenção nas demandas e desafios da nossa complexa sociedade contemporânea. Porém, esse diálogo entre yoga e psicologia pode, e precisa, ir além do viés da aplicação de “técnicas para a saúde, relaxamento e bem estar”. Mais do que esses benefícios, já bem comprovados, o yoga aponta diretamente para o caminho da experiência da transcendência e suas questões práticas, fundamentado em séculos de experimentação.


Referências    

Barbosa, CEG. Os Yogasutras de Patanjali. São Paulo: edição do autor, 2006.

Boainain Jr, E. Tornar-se transpessoal: transcendência e espiritualidade na obra de Carl Rogers. São Paulo: Summus, 1998.

Broad, W. A moderna ciência do yoga: os riscos e as recompensas. Rio de Janeiro: Valentina, 2013.

Dauster, G. Yoga Sutra de Patanjali: uma abordagem prática. Chapada dos Veadeiros: Paraíso dos Pândavas, 2007.

Eliade, M. Yoga: imortalidade e liberdade. São Paulo: Palas Athena, 1996.

Feuerstein, G. A tradição do yoga: história, literatura, filosofia e prática. São Paulo: Pensamento, 2005a.

Feuerstein, G. Uma visão profunda do yoga: teoria e prática. São Paulo: Pensamento, 2005b.

Hall, CS e Lindez, G. Teorias da personalidade (vol.2). São Paulo: EPU, 1984.


Manual de práticas integrativas e complementares no SUS. Secretaria da Saúde, Governo do Espírito Santo, 2013. 

30 de dez. de 2015

Adeus ano velho...adeus ano novo!




     Nasci em 1970, e vivi desde criança a expectativa de que o futuro aconteceria após o ano 2000. Aquelas coisas dos desenhos e filmes de ficção científica aconteceria magicamente no ano 2000, quando as cidades seriam envolvidas por enormes cúpulas de vidro, os carros voariam e todos teriam inimagináveis tecnologias a seu dispor. Tudo seria diferente, pela unica razão de já ser o "futuro". 
     Só percebi mais claramente essa fantasia pueril em mim aos 30 anos, quando o ano 2000 de fato chegou, e com ele uma bem vinda frustração. Nada referente ao "futuro" aconteceu, nem sequer o bug do milênio se deu. Naquele reveillon não esperava mais, logicamente, a mudança mágica vinda com a passagem de ano, mas me dei conta de que mantinha essa expectativa em algum canto da minha imaginação. Expectativa essa que se fez presente ainda em várias outras passagens que vivi, e que ilustra e amplia uma atitude bastante humana, a de criar expectativas, dar-lhes certeza e encontrar tranquilidade e conforto nelas.   

     Nessa passagem de 2015 para 2016 podemos fazer revisões do ano que se passou, constatar acertos, equívocos e coisas que deixamos pelo caminho. Isso é bom. Podemos também fazer uma lista de coisas que queremos fazer no próximo ano, de metas a serem atingidas, de projetos, de novos rumos que podemos dar a nossa vida, de habilidades a serem desenvolvidas para sermos mais felizes e completos, Isso também é bom. Mas há uma terceira opção que passa facilmente despercebida na hora das revisões, previsões, fogos, rojões, brindes e abraços. Um lugar sutil e fértil, um lugar onde nem estamos no ano velho e nem no ano novo. 

     A passagem do ano é um momento especial, como um ponto zero, um instante nem do passado, do ano que se acaba, e nem do futuro, do ano que nem começou. Por um instante não estamos nem lá e nem cá. Por que não ficar um pouco nesse lugar? Que tal não rever o que passou e nem prever o que virá? Apenas por um instante, podemos ficar nesse ponto zero, nesse lugar nenhum. Sem metas, sem destino, sem culpa, sem peso, sem carga. Só gozando a brisa leve que vem dessa fenda em nosso rigoroso senso de passagem do tempo.
       Essa atitude pode ser um pouca incômoda para nossa pressa e necessidade de controle, sucesso e perfeição, mas ela permite que a vida e a graça possam fluir, e cria abertura e espaço para que o realmente novo possa surgir e se manifestar. 

        Boa passagem para todos nós!!

Marcos Taschetto


5 de out. de 2015

Meu herói Francisco



      No decorrer da minha vida fui encontrando alguns heróis. Alguns deles ficaram como representantes significativos de um período específico da minha vida, tais como fotos importantes do meu passado. Alguns só encontrei recentemente e outros me guiam e inspiram já há um bom tempo. São Francisco de Assis é um desses.
     Na infância tive uma tradicional e convicta educação católica, e quando entrei na adolescência isso foi um prato cheio e um bom motivo para abrir uma crise. De repente, ir à missa, me confessar e seguir os demais ritos passaram a me incomodar. Mais do que isso, a figura do padre foi algo que passei a questionar profundamente. Como ele podia falar o que falava? Quem dava essa autoridade para ele? Passei a perceber incoerências e contradições no que faziam e pregavam, assim como a diferença entre a fé pessoal e a Igreja. E se eu não acreditava mais nesse pacote, como poderia continuar a participar a comungar daquilo tudo? Poderia sair ileso dessa aventura? Essas eram fortes, profundas e difíceis questões na minha mente e coração adolescente. Mas dessa minha saída da Igreja encontrei São Francisco. Que benção!
       Não sei ao certo como isso se deu, mas sei que a partir de um momento estava eu lá lendo sobre a sua vida e tendo ele como inspiração para a minha vida. Quem era essa figura totalmente fora do eixo de tudo o que eu achava que deveria ser um católico, um religioso, ou até mesmo uma pessoa normal? Curiosidade, fascínio e admiração foram me aproximando dele. Ele sim era coerente, inteiro, verdadeiro. Era também radical, corajoso e louco, porém doce e suave. Deu as costas para o que esperavam dele e foi viver o que acreditava, largou tudo. Falava com a natureza, com os animais e falava de Deus de uma forma íntima, fácil e simples. Para ele tudo e todos eram irmãos, até o medo, a dor e a morte. Quem era esse cara? De onde ele veio e o que é isso que me mostrava? Foi um rico encontro que me guia até hoje.
      Muitas reflexões poderiam ser feitas sobre os significados psicológicos de um adolescente encontrando São Francisco, ou da profundidade de tudo o que ele propôs, ou da relação dele com o Yoga. Mas minha relação com ele é pelo coração, sem maiores explicações. Percebo no adulto que hoje sou ainda as ondas transformadoras desse encontro adolescente. Tenho a sensação de que mais do que qualquer outra coisa, o mundo precisa de mais Franciscos. Todos têm seu lugar de importância, mas mais do que sabedores, poderosos, profetas e dignos senhores, precisamos de mais Franciscos, irmãos Franciscos. Somos por vezes terra seca desejando chuva, chuva mansa de simplicidade, verdade, desapego e amor.

        Salve Francisco!  
        Jay Francisco!

Marcos Taschetto


29 de jun. de 2015

Pulando da técnica



       Uma amiga me perguntou por que fui levemente irônico no final do texto anterior (A benção de ser sem noção), quando disse que haviam muitas formas de transcendermos nossa noção de eu, e que isso podia ocorrer “até” praticando Yoga e meditação. “Mas não é essa exatamente a proposta e o objetivo do Yoga e da meditação? O que quis dizer então com essa insinuação de que a transcendência pode não ocorrer justamente nessas práticas?", ela me perguntou.
    Yoga e meditação possuem essa intenção, a de que larguemos a bagagem e vivenciemos o ir para além daquilo e de quem imaginamos ser. E o Yoga faz essa proposta de forma radical e profunda, ou seja, isso precisa ser vivenciado em primeira pessoa, na pele e no coração de quem procura. Yoga é um caminho para se trilhar com as próprias pernas e pés, não é uma trilha virtual, mental, conceitual. Imagine em qual situação o prazer é mais pleno, em se ficar pensando em como a água do mar deve estar boa ou em pular e nadar no mar? Praticar Yoga e meditação é o próprio ato de pular no mar, sem restrições. As especulações sobre isso são só conjecturas mentais e não têm nenhum valor no largar a bagagem.
     Sendo coerente com essa proposta, o Yoga é um caminho essencialmente prático e nos oferece um amplo arsenal de técnicas para pularmos no mar. Há mestres, linguagem e técnicas para todo e qualquer perfil de praticante. Toda a diversidade humana é contemplada no Yoga. Em todas essas propostas a técnica ocupa um lugar especial, assim como o mestre, pois ela é a ferramenta concreta que permite a transformação. 
    Técnica é o modo ou o como fazer algo, e isso deve ser dominado, repetido e aprimorado pelo praticante. Uma das técnicas mais populares e praticadas do Yoga são os asanas, as posturas. Cada uma dessas posturas está associada há muitos detalhes para sua realização. Esses detalhes são na verdade ações que devem ser realizadas em diferentes níveis, quer seja muscular, de alinhamento, respiratório ou de atitude mentai. Algumas dessas ações musculares são bem específicas e que quanto feitas, garantem o alinhamento e a abertura segura do corpo. Todos esses detalhes são importantes e quando somados e integrados, fazem uma enorme diferença na qualidade e profundidade de nossa prática. 
   O mesmo vale para a meditação, pois para experimentá-la, pelo menos inicialmente, não basta sentar e fechar os olhos. A técnica é aqui ainda mais valiosa, pois sem ela, rápida e facilmente nos perderíamos em nossos eternos devaneios, ficando assim longe da atitude meditativa. Assim como no caso dos asanas, incontáveis são as técnicas disponíveis para a meditação.
      Mas todas essas ações são detalhes técnicos, que por mais valiosos que sejam, não passam de saber técnico, de um jeito de se fazer uma coisa. E aqui o exemplo da arte é bem pertinente. Como faço para aprender a tocar violão? Vejo o exemplo de alguém tocando, pego o violão e começo a dedilhar, mas, há não ser que eu tenha um talento excepcional, isso talvez não seja suficiente. A técnica se faz então necessária, ela preencherá esse espaço vazio e facilitará muito a aprendizagem. Então, após algum tempo de prática, já domino o violão, as notas, os acordes, os ritmos, as melodias, sei até ler partitura, e essa condição me diz que sei tocar, que posso até ensinar essas técnicas para outra pessoa. Mas talvez minha música não seja ainda arte, talvez ela não toque e emocione a ninguém. Falta ainda aquilo que está para além da técnica, que apenas o jeito certo não é capaz de produzir e expressar. Falta o ir além da técnica, falta esquecer a técnica e deixar-se ir pela música. A técnica é um caminho para a arte, não um fim em si.
     Podemos ficar fascinados pela técnica, pelo jeito certo de fazer os asanas/posturas e a meditação, assim como de tocar a música, de cozinhar, de vestir, de pensar, de transar, de conduzir a vida. Podemos confundir a técnica com a Vida, o dedo com a lua. Podemos ficar anos praticando asanas e perseguindo cada vez mais detalhes, mais aprimoramento, mais perfeição, mais dificuldade, mais e mais, mas se não abrirmos espaço para a entrega e aquietamento, não teremos em momento algum vivenciado o Yoga. Podemos ficar anos repetindo um mantra e ou contando a respiração, mas se não abrirmos espaço para a entrega e aquietamento teremos apenas sido bons fazedores de tarefa, apenas bons técnicos, sem clareza e transformação, sem meditação.    
     Um mestre é alguém que dominou uma técnica, mas muito mais do isso, ele a transcendeu, foi além dela, avistou aquilo para o que ela aponta, não está mais preso nela.

Marcos Taschetto



10 de jun. de 2015

A benção de ser sem noção


       Numa terça feira cedinho eu indo de bicicleta dar aula. Mudei meu trajeto rotineiro e passo em frente a um parque, onde algumas pessoas estão caminhando e se exercitando em aparelhos. O dia está lindo, céu azul e ar frio, apesar do sol brilhando. Enquanto vou passando pelo parque e observando suas árvores, acabo acompanhando com o olhar o voo de uma ave, talvez um pequeno gavião, cortando o fundo da minha paisagem.

       Por instantes voei com ela. Por instantes fluí pela leveza e amplidão do espaço aberto e ilimitado. Por instantes não era um professor de Yoga indo dar aula, não era um psicólogo que depois de dar aula teria um dia cheio no consultório. Por instantes não estava em uma terça feira de início de mês no auge dos quarenta e pouco anos. Por instantes não havia a menor preocupação com o que havia atrás de mim, com o que me aconteceu no passado, e nem com o que haveria pela frente, no caminho futuro. Por instantes não estava indo para lugar nenhum. Por instantes estar em Taubaté não fazia a menor diferença, assim como saber ou não saber algo sobre alguma coisa. Por instantes não era mais o Marcos que estava ali. Por alguns instantes eu não encontrava-me  restrito nas habituais perspectivas sobre quem sou.

       Por instantes, pois logo aterrizei. Perdi o contato com a ave e voltei a sentir o pedalar da bicicleta. Era terça feira, estava na minha hora e lembrei que precisava mandar arrumar o carro. Em instantes o Marcos estava ali novamente, intacto, pedalando e arquitetando o que e como fazer pequenas e importantes coisas do dia a dia. Mas, por instantes, perdi a noção de quem era, larguei a bagagem e me senti muito bem.

     Compartilho essa experiência para comentar sobre seu significado à partir de algumas possíveis repostas para a pergunta: o que foi isso que aconteceu? Um momento de devaneio? Um pequeno surto dissociativo? Uma “viagem” sem drogas? Uma fuga da realidade? Uma experiência estranha, que por sorte passou logo e que deve ser esquecida? Apenas mais uma dessas coisas meio esquisitas e que não levam a nada e que só acontece com quem vive no mundo da lua? Todos essas respostas podem ser dadas pelo senso comum e também, infelizmente, por boa parte do mundo psiquiátrico e psicológico. Todas elas acabam por descaracterizar e desconsiderar a valiosa experiência de largar a bagagem. Há nelas o entendimento de que houve uma ruptura indesejada e possivelmente patológica e comprometedora. Nossa bagagem é fundamental e deve ser muito bem cuidada e protegida, devemos estar sempre com ela. Mexer com a perspectiva sobre quem somos é, de alguma forma, coisa de louco.

        A bagagem é essa forte noção que temos sobre quem somos, algo tão óbvio que passa despercebido. Os instantes em que voei foram exatamente os instantes em que minha noção de tempo e de espaço não estavam presentes, embora eu estivesse presente (e muito bem, por sinal). Minha presença se deu em outra forma, sem o peso da bagagem que, a partir de meu passado e da consideração pelo meu futuro, determina meu o presente. No voo não havia a noção de encadeamento dos dias, como o de estar numa terça feira e assim já estar automaticamente disposto na condição de ter ainda três dias de trabalho pela frente para chegar no sábado. Era também irrelevante o que tinha para fazer em meus e papéis profissionais e se daria conta disso. Todos esses conteúdos são a própria bagagem que carregamos e que deixa o caminhar mais pesado e repleto de condições já previamente impostas.

        A bagagem é um fato e uma condição humana e ponto. Não há nada de errado com ela. A questão é a limitação e o sofrimento que a identificação com ela nos traz. Esse é um saber que mestres de diferentes tradições milenares apontam sem a menor hesitação: não somos nossa bagagem! Somos algo além da noção que temos sobre nós mesmos. E dizem mais, que essa não é uma experiência restrita, especial e exclusiva de e para ninguém. 

       Quantas vezes você já não largou a bagagem? Quantas vezes já não foi além da noção de quem era? Quantas vezes já não voou? Talvez no calor do envolvimento com a arte ou a religião, em uma brincadeira, no amor, na dor, no contato com a morte, numa situação limite, talvez espontaneamente, e talvez até praticando Yoga e meditação. Pode ser que esses instantes apenas tenham passados despercebidos, ou, quem sabe, tenham sido entendidos inadequadamente como uma falha em deixar cair a bagagem.  

Marcos Taschetto



6 de mai. de 2015

Quem é que tá podendo?



Já no final da primeira sessão pergunto ao paciente como se sente. Ele diz que está bem, que sente-se aliviado, pois esperava que eu batesse mais nele. Ele havia me contado uma parte de sua história, o que incluía a passagem por alguns terapeutas, psicólogos e psiquiatras, e que, em várias oportunidades “apanhou” de seus cuidadores. Na verdade foram situações de confrontos, de apresentação de limites e de não correspondências de suas expectativas o que ele chamava de apanhar, mas a expressão “me batesse mais” tocou-me especialmente, e despertou algumas lembranças.

A primeira delas foi do tempo da minha faculdade de psicologia. Entre nós alunos havia sempre um buchicho sobre quem estava fazendo terapia e de como ela estava. Esse buchicho esquentava quanto se discutia o quanto era bom o terapeuta de cada um, e atingia o seu ápice quando tentávamos deixar claro o poder de cada um deles. Um critério valioso para medir esse poder era o estado em que se ficava após as sessões. Sair arrasado, chorando, desorientado, decepcionado e zonzo era um ótimo sinal! Levar “uns tapas na cara”, umas cutucadas, umas alfinetadas, uns “presta atenção”, ficar sem chão, tudo isso também era entendido como muito positivo. Hoje tudo isso me parece um pouco exagerado, mas era assim que boa parte dos alunos do curso de psicologia avaliavam um terapeuta como bom.

Outra imagem que me veio foi a de algumas situações em que tive a valiosa oportunidade de escutar alunos do ensino médio falarem sobre seus professores. Alguns deles eram considerados bonzinhos, dedicados, educados, legais, mas com pouca ou sem nenhuma “moral” com os alunos. Eram coitados que não conseguiam dominar a turma, que perdiam as rédeas durante as aulas, que choravam e que se sentiam fracos e que não aguentavam o tranco de ser professor. Já alguns poucos professores eram “f....”, com esses eles não brincavam, pois sabiam que eles seriam enérgicos e não deixariam passar nada. Admiravam e temia esses professores durões, apesar de não sentirem-se bem em suas aulas e de não acharem que explicavam bem a matéria. Lembrei-me também de um professor que tive e da postura de alguns professores de Yoga que se destacam pela atitude austera de tratar seus alunos. Tapas, fala rude, cara feia, broncas, rigidez técnica, correções exageradas, aulas muito exigentes.... Tudo em nome de um alto nível de Yoga que muitos alunos pagavam caro para ter.

Lembrei-me também da minha inesquecível época de quartel, ambiente povoado por figuras únicas. Uma delas era um certo capitão com forte sotaque carioca que usava uma boina vermelha. Paraquedismo, sobrevivência na selva, infantaria, técnicas de guerra... ele já tinha feito de tudo no mundo militar, era o próprio Rambo, o “cara” do quartel. Era temido e admirado, intensamente, pelos soldados pela austeridade e rigor com que tratava qualquer situação. Aí de quem fizesse alguma coisa errada perto dele!

Recordei-me de mais algumas outras situações, mas essas já são suficientes para constatar o quanto o poder nos atrai. Todos esses personagens que recordei estavam emanando poder, ou, melhor dizendo, estavam sendo vistos como possuidores de muito poder por seus “subalternos”. Os alunos da psicologia, do ensino médio, do Yoga e os soldados faziam essa generosa concessão à essas figuras. É como se houvesse o seguinte diálogo entre eles: “Veja como eu tenho poder, como eu posso, como eu sei, como sou grande e potente!!”, e do outro lado: “Sim eu sei, eu vejo o quanto você é poderoso e o quanto eu sou fraco, ignorante, inseguro e incapaz, e por isso mesmo tenho por você admiração e temor.” Um diálogo silencioso e invisível, mas que determina as posições de cada um no jogo social, e que tem o real poder de traçar diferentes destinos.

Essa distribuição desigual de poder nos diferentes papéis parece até ser adequada aos objetivos militares, ou àquelas situações onde a intenção de se controlar conduzir o outro se entende como necessária, apesar de tal conduta ser sempre discutível. Mas o que é de se pensar seriamente é a presença dessa situação de poder nas relações de cuidado e aprendizagem. Um professor encarnado de poder não abre espaço para a aprendizagem e descobertas de seus alunos. Um professor de Yoga berrando poder não facilita em nada o mergulho do aluno em sua prática. Um terapeuta sentado no trono do poder não legitima e nem apóia a autonomia de seu paciente. 

Todas essas situações criam a falsa sensação de que só um lado da moeda possui poder, de que há aquele que o tem e há aquele que não o tem. Vaidade bem alimentada de um lado e estima desnutrida do outro. Profundo equívoco, e eficiente forma de se dar o primeiro passo para a luta e guerra pela conquista do poder.