29 de jan. de 2013

Mantenha o que importa


Neste ultimo domingo, no meio das ultimas noticias ao vivo pela TV, ouvi alguém dizendo: “é melhor tirar as crianças da sala”, em seguida pensei: ”seria melhor a TV desligada.” Não me pronunciei e a TV permaneceu ligada, vomitando realidades, e as crianças foram brincar em outro lugar, afinal aquilo não eram imagens e notícias apropriadas para uma criança ver. Mas me pergunto, seriam por acaso apropriadas para adultos?

Como alguém (criança, jovem ou adulto) recebe toda essa carga? Diria que essa é uma carga dupla, pois há o tema morte, no caso a morte trágica de muitas pessoas, e há, principalmente, a carga do como isso esta sendo comunicado e experimentado pela TV. Da morte podemos, e devemos, nos aproximar ao longo da vida, incluí-la em nossas perdas diárias, em nossas frustrações, em nossos sonhos, em nossos encontros com o inusitado. Desejar e vivenciar um real desfrute da vida nos pede a morte por perto. Sem ela qualquer castelo é de areia. Mas essa é uma empreitada que se faz abrindo os olhos e o coração para os acontecimentos do dia a dia, da nossa vida pessoal, é algo íntimo, artesanal, que envolve amadurecimento e entrega. Não se elabora a morte em noticias de TV. Muito menos se elabora a morte sendo platéia do sofrimento alheio, de saber detalhes de como foi a morte do outro, de ter indícios e palpites de quem é o culpado. Não nos aproximamos da morte assistindo uma reconstituição, nem ouvido testemunhos de sobreviventes e nem com os comentários técnicos de especialistas. Muito menos fazemos algo efetivo por quem esta sofrendo. Toda essa carga de informação impregnada de forte emoção torna-se agressiva, uma violência quase gratuita, que pouco acrescenta em nosso entendimento sobre a experiência de morte.

Diante de uma tragédia, o melhor a fazer é evitar outra. Em respeito a quem sofre de fato e ao que temos de lúcido, terno, tranqüilo e saudável, desligue a TV. Faça um pouco de silêncio e, esteja onde estiver, abrace carinhosamente quem está de fato mergulhado na dor. 

15 de jan. de 2013

Sem culpa


Quase todos nós carregamos um peso. Este peso é colocado em nossos ombros já bem cedo e o abraçamos por boa parte de vida, quase como se ele já não estivesse mais lá. Ele tem forte sabor religioso e tempera muitas de nossas ações, projetos e sonhos. Ele dá o tom de uma grande parcela de tudo o que o ocidente produziu em termos de relações humanas, valores, moral, ideais e cultura. Esse peso chama-se culpa.

Culpa de ser como se é, de precisar limpar-se, melhorar-se, aprimorar-se, negar-se e rejeitar-se para ser melhor, para ser como deveria ser.  Culpa de sentir o que não deveria sentir, de pensar o que não poderia pensar, de desejar o que não se deve nunca desejar. Culpa de vivenciar todas essa “coisas” que todos nós vivenciamos, mas em silêncio cúmplice. Culpa de não ser o melhor, o mais amado, o primeiro, o perfeito, o já pronto. Culpa por não ter sido bom, educado, compreensivo, saudável, amável, inteligente, esperto, bem sucedido, rico, poderoso. Culpa por errar, por falhar, por ficar devendo, por estar aquém, por não ter correspondido. Culpa por ser assim, um ser, humano.

Muitas vezes essa culpa não é identificada claramente, mas aparece de forma quase subterrânea, disfarçada e diluída em outras questões e conflitos. Através da lente do consultório psicológico esse emaranhado todo da culpa fica mais visível, e torna-se possível vê-la enraizada em nosso cotidiano. Assim como a psicoterapia, a prática de yoga e da meditação visam o auto conhecimento, o auto esclarecimento, e assim passam inevitavelmente pelas amarras da culpa.

Não há mágica, mas algumas experiências são fortes o bastante para gerar transformações, mesmo que sutis. Proponho um sankalpa para sua prática de relaxamento ou de meditação. Sankalpa é uma resolução, uma afirmação interior simples e direta que se repete mentalmente por um período, é como uma pedra jogada no lago mental que vai gerar ondas que se propagam até as margens. Deixe este sankalpa se propagar pelo seu corpo e mente por alguns minutos e depois fique em silêncio absorvendo os efeitos dessa afirmação:

“Não devo nada,

 absolutamente nada,

 para ninguém,

 nem ontem, nem hoje, nem amanha”  

Essa afirmação pode despertar situações pendentes já esquecidas, que você pode depois solucionar, se possível ou não. Ela também não nega, de forma alguma, o poder das relações afetivas e a nossa total interdependência emocional dos que nos cercam, pois todos nós dependemos de um jeito ou de outro dos outros, mas essa vivência é bem diferente do pesado e sufocante sentimento de culpa, de dívida e de falta.   



4 de jan. de 2013

Quando o passado se fez presente

                                             Eu aos 16 anos

Hoje acordei há uns 25 anos atrás. Despertei e fiquei um tempo ainda deitado e de olhos fechados, observando o que estava sentindo, parecia que estava na casa dos meus pais, em meu quarto num sábado de manhã, com uns 16 ou 17 anos. Foi mais do que uma lembrança, eu estava de fato lá. De maneira impressionante revivi muitos detalhes da rotina que tinha nessa fase da minha vida. Meus pais saiam de casa mais cedo para irem abrir a livraria e eu e meu irmão íamos depois. O quarto, a casa, as manhas, o trajeto, tudo isso muito claro, muito vivo, mas mais do que essas imagens, a sensação de estar vivendo tudo isso é tomou conta de mim. Quantos significados em hábitos banais, quantas experiências que escapam às palavras, anos depois, sem nenhum chamado, estava tudo ali novamente. Deixe essa sensação acontecer e aos poucos fui saindo deste estado e fiz minha prática matinal.

Após o café da manhã já me encontrava presente no dia de hoje e fui resolver várias coisas no centro da cidade. No caminho resolvi experimentar um pouco mais do que revivi espontaneamente ao despertar. Passei na casa de meus pais, e a partir de lá, fiz a pé o mesmo trajeto que fazia até a livraria. Gradativamente fui entrando no clima e lembranças foram brotando. A arquitetura da cidade mudou nesses anos e algumas casas surgiram e outras sumiram, assim como ruas, árvores e comércios. Faço freqüentemente esse mesmo caminho, mas não com essa percepção, e sim distraído em meus pensamentos com outras coisas.

Havia uma passagem pela estrada de ferro no fim de uma tranqüila rua de paralelepípedos, ela era cheia de arvores, larga, cercada pelos grandes muros de uma fábrica abandonada (a antiga Fite Juta). Hoje essa rua se transformou em um movimentado túnel barulhento e sem nenhuma arvore. Passar por esse trecho foi muito forte para mim, pois ao mesmo tempo em que olhava para a rua como está hoje, conseguia ver claramente a minha rua, que estava guardada por muito tempo não sei onde. As duas imagens se sobrepunham sem dificuldade e quanto mais isso acontecia, mais lembranças e sensações vinham. Não sabia que era tão marcado pela presença das arvores, pois me lembrei nitidamente de várias, que infelizmente não existem mais. Coincidentemente encontrei no caminho três antigos conhecidos, que assim como a cidade e assim como eu, também sofreram a passagem desses 25 anos. Tudo isso me tocou bastante, fui tomado por emoções que não imaginava sentir.

Dessa experiência fiquei com uma coisa, que o que de fato importa está dentro e não fora. Com isso quero dizer que aquilo que me toca é aquilo que tem significado para mim, que eu confiro valor e dou a cor para a realidade externa, e ela, sem o meu significado, não é nada para mim. Se caio de uma grande arvore, ou se pulo na frente de um trem, vou me machucar e ponto, mas o que essa arvore, ou esse trem, é e representa no jogo da minha vida só eu posso criar. A realidade não existe independente de mim e de como a desenho e esse é um fato de incríveis conseqüências, que pode nos libertar ou nos aprisionar. Qual rua é mais verdadeira, a que todos vêem ou a que trago no coração? O que me emocionou foi entrar em contato com todos estes significados, dos quais estava distante, mas que compõem minha história.

Mas que atitude ter para com todos estes conteúdos, com toda esta memória, essas emoções e estes significados? Acolhe-los carinhosamente é o máximo e o melhor que posso fazer, e após recebê-los bem, carinhosamente deixá-los ir. A bagagem não pode ser grande, não há porque carregar tudo e apegar-se é certeza de sofrimento e cisão interna. Ter um olho no hoje e um olho no passado deixa-nos vesgos, com a visão prejudicada, é uma forma de não estar presente, de não encarar e aceitar a vida no seu desenrolar aqui e agora. O consultório psicológico é basicamente movido por esse descompasso entre o ontem e o hoje, por esse nó entre o que foi, o que é e o que deveria ser. Todos os mestres e formas de yoga e meditação nos lembram de que o pior sofrimento é ter uma mente confusa e sem foco, perdida entre devaneios do passado e do futuro.  

Foi muito bom reviver uma parte do meu mundo de 16 anos, mas que bom fazer isso encima dos meus pés e pernas de 42.