22 de jul. de 2012

Quando damos importância

O dia havia sido meio difícil. Um pouco de correria, de problemas e de irritações. Aquelas coisas, que às vezes, vão se acumulando e nos envolvem. No final do expediente, antes de ir para casa, enquanto estava na fila do supermercado, ouço alguém chamando: “professor!”. Viro-me e um rapaz barbado me cumprimenta: “não lembro seu nome, mas você deu aula de ética para mim na 8ª série”.
Caramba, fazia tempo que isso não acontecia, quase não encontro mais com ex-alunos, já parei de dar aulas em escolas há mais de cinco anos. Eu também não lembrava o seu nome, nunca fui muito bom nisso, mas aos poucos me vieram flashes dele, que na ocasião tinha 14 anos, e da sua turma. Não conseguiria reconhecê-lo, mas ele me reconheceu e veio me cumprimentar, apresentou sua esposa e me deu um presente inesperado para aquele final de quinta feira.
Ele me deu talvez o maior presente que um professor possa ganhar, disse que as aula de ética foram importantes para ele, que gostava delas e que ainda lembrava-se delas. Poxa, que satisfação essa, quinze anos depois eu recebo essa palavras que dão pleno sentido ao que é ser professor. Muito mais do que aquele que ensina algum saber específico, entendo o ser professor como aquele que faz alguma importância, que cria algo interessante e transformador no e com o aluno. Não lembro sequer o nome da disciplina de alguns professores que tive e que foram, e ainda o são, importantes para minha formação.
Nunca pensei em ser professor, nem de ética, nem de psicologia, e muito menos de yoga. Por caminhos um pouco inesperados acabei me tornando professor, e gostei muito. Lembro-me de como me esforcei, nos primeiros anos de sala de aula, em tentar ser exatamente igual a um professor que tive no ensino médio. Era o professor de literatura, suas aulas eram disputadas e inevitavelmente silenciosas, pois nelas ninguém piscava, não porque ele era bravo, mas por que suas histórias eram incríveis, irresistíveis, deliciosas. Qualquer turma se entregava à suas viagens literárias, históricas e psicológicas. Mas este era o jeito dele, não o meu, e só fui me sentir mais a vontade com meu próprio jeito de dar aulas uns três anos depois. Meu jeito era bem diferente do dele, mas suas aulas foram muito importantes para mim.
No yoga a relação entre professor e aluno é fundamental. Se essa relação não for importante, ou seja, se não gerar experiências com alguma importância no aluno e no professor, a qualidade de prática fica muito prejudicada, permanece rasa. Já fui um aluno com reservas, que questionava constantemente sobre o quanto estava sendo bom estar sob os cuidados de determinado professor. Este questionamento bloqueou minha prática, pois me deixou incapaz de confiar e de me entregar. Hoje percebo que acabei não dando muita importância a este aprendizado, pois me limitei a aprender técnicas, e só, não passei disso. Apenas quando damos real importância nos transformamos, somos afetados e vamos um pouco além. 
Foi-me importante saber que tive alguma importância para meu ex-aluno, e nessa hora, ser professor ou ser aluno passa há não ter importância alguma.

18 de jul. de 2012

Sivananda

         
    

   "O homem semeia uma ação e colhe um hábito,
         
            semeia um hábito e colhe um caráter,

            semeia um caráter e colhe um destino"

                                                                                                          Swami Sivananda

Sivananda foi um grande e realizado mestre yogui que teve muitos discípulos e escreveu quase 300 livros. Antes de se dedicar totalmente ao yoga se formou e trabalhou como médico na Índia. Aos 36 anos largou tudo e tornou-se um swami, um monge, mudando radicalmente de vida. Anos depois fundou a "Sociedade da Vida Divina" e a "Universidade Forest de Yoga Vedanda", além de um hospital gratuito para atender sadhus e a população de Rishikesh, nos Himalayas.

14 de jul. de 2012

Palavras de poder

Uma antiga paciente, que estava afastada da terapia por alguns meses, me procura novamente. Marcamos um horário, e a sessão começa já com as novidades. Ela tomou uma decisão que está provocando grandes mudanças na própria vida e na dos seus parentes mais próximos. Realizou o que queria há tempos, tomou coragem e deu o passo. Está nitidamente mais radiante do que antes.
Mas nem sempre as mudanças acontecem sem resistências e dificuldades. E aí ele revela: "você me falou uma coisa muito importante, que foi fundamental para eu me preparar e enfrentar meu maior obstáculo, sem isso eu não teria conseguido fazer o que fiz".
Fiquei curioso, o que teria dito eu de tão significativo para ela há alguns messes atrás? Que palavras foram estas que serviram de bússola, de lembrete do caminho a ser seguido, que fizeram as vezes de um escudo de proteção contra a oposição, que foram como um amuleto "abre caminhos"?
Quis saber, e para minha quase surpresa não foi nenhuma frase especial, mas um pequeno comentário no meio de algo que achava mais importante. Digo quase surpresa, pois isso ocorre com frequência, no meio da sessão digo alguma coisa que toma proporções muito maior do que poderia imaginar na vida do paciente. No caso dela fiz uma pequena observação de algo que poderia acontecer, que, acabou acontecendo.

Relato esse episódio, pois ele me fez lembrar da força da palavra, do que é dito, do que é pronunciado. Geralmente falamos com fluidez, com a língua solta, sem muita consciência da realidade que estamos criando com o que dizemos. Se as palavras fossem tijolos, nossas falas estariam construindo o que? Uma casa?Muros? Um templo? Pontes? Um lar? Um bar?
No yoga podemos utilizar as palavras como ferramenta para ampliar a consciência de duas maneiras. Uma delas é pronunciando as palavras de poder, ou seja, os mantras. Seus efeitos são sutis e poderosos, mesmo quando desconhecemos seus significados. Outra maneira de intensificar as palavras é justamente não pronunciá-las através do mouna, a prática do silêncio. Particularmente gosto muito dessa ultima, pois desperta uma grande sensibilidade e cuidado com a realidade que anunciamos com as palavras.

Por uma feliz coincidência, no mesmo dia em que ocorreu a sessão que relatei, eu havia me comprometido logo cedo em fazer ahimsa verbal por todo o dia. Ahimsa é o primeiro dos dez princípios éticos do yoga e refere-se a prática da não violência. Fazê-lo verbalmente é ter cuidado com tudo que será pronunciado, é ter a intensão clara e firme de não destruir, atacar, difamar, praguejar, denegrir, seja lá o que for.
Mas mais do que não agredir, praticar ahimsa verbal é buscar pronunciar palavras verdadeiras de compreensão, de cuidado, de paz, de respeito e consideração por si mesmo e pelo outro. E talvez estas palavras se tornem palavras de poder, de transformação.
  

8 de jul. de 2012

O yoga de Anderson Silva

Ouvi uma parte da declaração do lutador Anderson Silva antes dessa ultima luta (ocorrida em 07/07/12) contra um americano, na qual ele foi o vencedor. Só me lembro dele falar que ia arrebentar o americano, que ia arrancar seus dentes, que ia bater forte, que seu adversário não valia nada, e coisas do tipo. Sei que o americano já havia feito provocações anteriores e que havia um clima tenso no ar. Bem, pode ser que fosse só marketing para promover o evento, ou a briga de rua, ou o campeonato, ou a vingança... não sei, não ficou bem claro. Mas ao ouvi-lo dizer em como estava furioso e queria destruir seu inimigo, me vieram duas imagens que apontam para outros significados sobre o lutar, que a meu ver, parecem mais interessantes e sábios.
A primeira imagem é a história de um samurai que não pôde cumprir a ordem de seu senhor para matar um inimigo, pois este, ao ofendê-lo, o fez sentir raiva. Como um samurai poderia combater se estava envolvido por questões pessoais, se estava possuído pela raiva e queria vingança, se estava ofendido em sua vaidade? Onde estaria sua lucidez? Se lutasse não seria nobre, não seria digno de ser um samurai, aquele que busca a conquista não apenas do adversário externo, mas principalmente do seu mundo interno.
A outra imagem é um pequeno texto de Chuang Tzu, mestre taoísta que já citei em um texto anterior, que descreve como um bom treinador deve preparar um galo de briga. Na verdade ele se refere ao processo gradual de desapego do ego e suas pretensões, e o enorme poder resultante disso.
Essas duas imagens falam do único combate válido que podemos empreender na vida: superar nossas próprias limitações, nossas próprias confusões entre quem somos e quem achamos que somos. As artes marciais são uma prática desse entendimento, não se luta contra o outro, na verdade não se luta contra nada, o único adversário real sempre é um aspecto nosso, os inimigos de fora são quase sempre reflexos de nossas próprias limitações.  Pode ser um grande equívoco buscar socá-los e tentar destrui-los, pois eles não estão e nem morrem fora de nós. Essa é uma experiência que as varias abordagens da filosofa, da psicoterapia e do misticismo propõem incessantemente: conhece-te a ti mesmo! E não é exatamente esse o combate que o yogi deve assumir se deseja encontrar paz verdadeira e duradoura?


O galo de briga”
Chi Hsing Tzu era treinador de galos de briga do Rei Hsuan. Estava treinando uma bela ave e o rei sempre perguntava se a ave estava pronta para brigar. “Ainda não”, dizia o treinador, “ele é fogoso, é pronto para atiçar briga com qualquer ave, é vaidoso e confiante na sua própria força”. Depois de dez dias, respondeu novamente: “ainda não, eriça-se todo quando ouve outra ave grasnar”. Depois de mais dez dias: “ainda não, ainda está com aquele ar irado e eriça as penas”. Depois de dez dias disse o treinador: “agora ele está quase pronto, quando outra ave grasna, seu olho nem mesmo pisca, fica imóvel como um galo de madeira, é um lutador amadurecido, outras aves olharão para ele de relance e fugirão”.
                                                                              Chuang Tzu
                                                                                                                    

3 de jul. de 2012

Um grande desperdício


A prática de yoga produz uma infinidade de efeitos positivos em vários níveis, e isso é perceptível já na primeira aula. Mas com o tempo, podemos nos acostumar com esses efeitos e eles passam então despercebidos, embora continuem a ocorrer. Esse pequeno detalhe faz bastante diferença, nós precisamos perceber para poder reconhecer. Se não há a percepção não haverá o reconhecimento e a incorporação de algo vivenciado. A experiência precisa passar pela consciência de alguma maneira, ainda mais no yoga.
No final de algumas práticas percebo o quanto o grupo se modificou do inicio da aula. Diferentemente do inicio da aula, no final paira um evidente silêncio na sala, as expressões estão serenas, as posturas quietas e aflora uma sensação de que tudo está bem, exatamente como está. Mas esse clima não foi gratuito, foi resultado do empenho, do esforço, da dedicação, da superação e da entrega de todos os membros do grupo. Houve uma conquista, das mais valiosas que se possa ter. Mas diante desse fruto tão valioso vejo frequentemente ocorrer um verdadeiro desperdício. Talvez por não reconhecerem que estão de posse de algo precioso e sutil, os alunos rapidamente dissolvem o que conquistaram em mais de uma hora de prática. Logo o falatório volta, o dia a dia e o mundo lá fora preenchem novamente a sala, e em poucos minutos, ou segundos, a mente volta com suas habituais agitações e distrações. Não que eu ache que isso é errado, e que devemos viver isolados do mundo, mas o que percebo é que o esforço e o conquistado não foram percebidos, reconhecidos e valorizados. É como se cada um tivesse se empenhado muito em encher uma grande bacia com água fresca em pleno deserto, e displicentemente, derrubasse toda essa agua no chão. Uma conquista que não foi reconhecida é perdida rapidamente, é trocada facilmente pela primeira distração que aparecer. Desperdício.  
Ás vezes proponho o seguinte após aula: que saíamos todos em silêncio, que levemos para casa, ou para fora da sala, a bacia cheia, repleta do que temos de melhor. Que valorizemos aquilo que conquistamos e nos faz tão bem, e que isso se espalhe por onde quer que formos, tal como um suave perfume. Mas isso parece que toca em uma outra questão: nem sempre suportamos o nosso melhor, nem sempre suportamos o simplesmente estar bem.