Na ultima quarta feira (18 de fevereiro) os católicos
entraram no período da quaresma. Serão quarenta dias de preparação para a
Páscoa, a grande festa cristã. Essa preparação, entre outros símbolos, se fundamenta
nos quarenta dias de introspecção, austeridades e recolhimento que Jesus passou
no deserto antes de começar sua vida pública. Também foi nesse retiro no
deserto que Jesus confrontou-se com as três tentações do demônio.
Passar quarenta dias no deserto implica em submeter-se à experiências
das quais estamos bem distantes em nossos confortáveis, distraídos, corridos e
atropelados dias. Estar no deserto é uma forma radical de lidar consigo mesmo, de
aproximar-se nu e desarmado da solidão, da falta, do medo e de muitos, até
então silenciosos, fantasmas. É viver na pele a privação das necessidades
básicas de alimentação, conforto, segurança e proteção que nos parecem tão imprescindíveis.
E mais do que isso, no deserto, o eu e todas suas construções e convicções, é posto
a prova impiedosamente à luz do penetrante sol.
Jesus abriu mão de prazeres e certezas e recolheu-se no
deserto em oração e silêncio. Lá se fortaleceu, não apenas por ter sobrevivido
fisicamente, mas principalmente por ter confrontado suas profundas dúvidas, na
forma de tentações demoníacas, e diante delas afirmar e manter sua missão. Só
depois disso partiu para o mundo compartilhando e anunciando sua luz. Essa é
uma cena arquetípica, não só restrita à espiritualidade, mas pertinente à necessidade
humana de amadurecimento. Esta cena segue um certo roteiro, que passa pelo recolhimento
e afastamento do mundo, desapego do que se tinha, entrega e fé a esse processo,
confronto com as próprias limitações, purificação, transformação, afirmação de
um novo estado de ser e, por fim, a volta ao mundo. Quantas tradições não
repetem, a milhares de anos, essa mesma jornada em suas iniciações e
treinamentos? Quantas vezes, ao longo da vida, não passamos
por algo parecido, embora em escala bem menor, naqueles momentos
que antecedem a importantes mudanças?
Parece-me que atualmente essa imagem de Jesus no deserto
está um pouco esquecida, mesmo tendo o cristianismo em sua história uma forte
tradição de místicos e padres do deserto. No oriente essa é uma prática mais
familiar, que se expressa tanto na forma de vida de eremitas, monges e saddhus assim como na retirada e estadia
ocasional e breve de pessoas “mundanas” em monastérios e asharams. Pode-se dizer que nós humanos precisamos e sempre estivemos, de alguma
forma, perto do deserto.
A quaresma pode ser uma aproximação moderna do deserto. Praticar
um pouco de jejum, orar mais, ficar em silêncio, abrir espaço para o perdão, se
abster de algo prazeroso, fazer algumas mudanças de comportamento, tudo isso
pode funcionar como estar no deserto. Tudo isso pode trazer mais vigor para
nossa vida interna, mais proximidade do espírito e de tudo aquilo que importa
de fato. Essa ida ao deserto só não precisa ser mobilizada pelas equivocadas intenções
de mortificação, de penitência e de culpa. Nada há para ser punido ou
castigado, pelo contrário, muito há para ser descoberto, revelado, saboreado e
vivido, e o deserto apenas ajuda a cozinhar um pouco mais rápido.
Marcos Taschetto
Marcos Taschetto
Perfeito! Linda reflexão...
ResponderExcluirAbração!
ExcluirLindo
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