24 de jul. de 2016

Minha filha e as nossas mudanças




      Minha filha está aproveitando suas férias escolares para se dedicar prazerosamente e inteiramente a duas “tarefas”: brincar de bonecas com a prima e fazer uma grande mudança em todas as suas coisas. Começou escolhendo alguns desenhos e fotos que “tenham mais haver” com ela para montar novos quadros. Abriu seus dois baús e está fazendo uma faxina geral, selecionado o que vai doar, o que vai para o lixo e que vai guardar. Já fez também um novo projeto para o layout do quarto, que passará agora a não será mais tão infantil, ganhando alguns detalhes mais jovens e descolados. Mas dentro de todo esse movimento de mudança, que apoio e me encorajo também a fazer, uma situação em especial me tocou. Minha filha separou algumas bonecas para doar e entre elas estava a “Moritas”, sua boneca preferida ao longo de vários anos, sua primeira grande companheira de brincadeiras.

           Para quem é pai ou mãe sabe o que significa ver sua filha/o crescer. Ela está agora com dez anos e claramente está se despedindo da infância, e isso me provoca um sentimento ambíguo de felicidade e tristeza. Felicidade de vê-la construindo seu caminho, descobrindo seu jeito, se organizando, se preparando para muitas futuras aventuras e experimentando sua independência. Tristeza pelo gosto de despedida que essas mudanças trazem. A pequena está crescendo e todo um mundo está ficando para traz, um mundo que não volta mais, que por sinal seria trágico e patológico se permanecesse intacto. O espaço que vai se abrindo agora são para lembranças. Diante desse quadro fico eu nesse lugar estranho de ter um sorriso no rosto e um aperto no peito. Incentivo sua faxina e ao mesmo tempo questiono se precisa se desfazer de tudo assim de uma vez. Quase como se minha mão direita a ajudasse a fazer suas mudanças enquanto a mão esquerda, sorrateiramente, a segurasse. Lugar por vezes desconfortável esse de se estar diante e dentro da mudança.

       A mudança das situações é algo tão óbvio, certo, irrevogável, inquestionável e previsível que era de se esperar que soubéssemos lidar muito bem com isso. A natureza toda se expressa pela mudança contínua e em fluxo, em permanente impermanência. Tudo se relaciona permeado pela mudança, pelo jogo de idas e vindas, de alternância entre o que nasce e o que morre. Temos o nosso critério humano de tempo, que nos diz que minha filha com seus dez anos está no começo da vida e eu, com meus quarenta e cinco, já encontro-me no meio dela. Essa nossa referência nos faz pensar que um mosquito vive pouco e que uma montanha ou uma pedra são eternas. Essa noção temporal nos ilude, sugerindo que algumas coisas são fugazes e outras são indiferentes à passagem do tempo, nos enganamos com a ideia de que há o que não muda. É só uma questão de ponto de vista e de tempo. A mudança pulsa em ritmos diferentes, mas não poupa nada nem ninguém.

        Mas o que nos faz resistir à mudança? Por que sofremos com algumas mudanças? O que nos mantém empacados e freando o fluxo? Esse lugar desconfortável diante da mudança relaciona-se diretamente com nossos projetos e expectativas, com a nossa necessidade de controle e nosso apego. É claro que contamos com as mudanças, mas sempre com aquelas mudanças que desejamos, que planejamos, que estão de acordo com nossos planos. Nos abrimos mais facilmente para as mudanças das quais sabemos algo, que imaginamos estar preparados e que resultarão em nosso fortalecimento. Encaramos bem as mudanças onde temos algum controle, onde nossa noção de poder pessoal não seja afetada. Porém o fluxo das mudanças da vida não segue esse nosso roteiro, é indiferente à essa nossa necessidade de segurança, as mudanças simplesmente se dão, e então, fazemos o que podemos. 


            Algumas  mudanças podem vir como rasteiras que nos desestabilizam e nos jogam na correnteza do fluxo da vida, correnteza que não nos fornece nenhum roteiro antecipado do que virá. Nesse momento, se formos sinceros, é bem capaz que encontremos apenas a sensação interna de não saber, de não ter controle, de não ter respostas claras. Geralmente lutamos contra essa sensação, nos esforçando e resistindo para direcionar a mudança. Porém esse é um momento valioso, pois se há o desconforto e a ameaça da mudança, há também, justamente no cerne dessa situação, a oportunidade de nos abrirmos ao que está além do nosso umbigo.


         Mudanças podem ser vivenciadas como convites para lidarmos com alguns sentimentos fundamentais para o amadurecimento, tais como apego, frustração, impotência, solidão, medo, perda, surpresa, criatividade, renovação, abertura, entrega, confiança.... Passar por mudanças é uma real oportunidade de conhecer novos aspectos sobre nós mesmos, que necessariamente ainda não conhecemos.

Marcos Taschetto

4 de jun. de 2016

A meditação e o desapego



         O yoga é uma prática milenar sustentada em alguns princípios fundamentais comuns a várias correntes da espiritualidade universal. Entre esses o desapego (vairagya) é um central. Desapego é um conceito que pode ser facilmente associado ao ato de largar bens materiais, de despojar-se de confortos, vaidades e de todo e qualquer tipo de posses. Sim, o desapego pode ser compreendido por esse viés, que se cristaliza na figura emblemática do sadhu, aquele adepto hindu que renunciou aos jogos da sociedade e do mundo. Ele vive nu, sem moradia, sem pertences, sem nenhum vínculo social, a não ser o de ser um sadhu, um homem santo cujo papel social ocupa um lugar de admiração e destaque dentro da cultura hindu. 

          Entretanto, nesse ato de renúncia do sadhu há um ponto curioso, pois ele na verdade faz uma troca de papéis, quando abandona um status para assumir outro, que por sinal, é considerado mais elevado que o anterior. Agora ele não é mais um homem comum, do mundo, ele tornou-se um comprometido com a busca espiritual, ele está mais próximo do divino, daquilo que os simples mortais ainda precisarão de muito esforço para alcançar. Desapegou-se de uma condição e apegou-se a outra, largou uma roupa e vestiu outra, mais sutil, mais sedutora. Essa contradição da troca de apegos, anunciada como desapego, pode ser observada em qualquer outra prática de religiosidade e/ou espiritualidade.

          No yoga desapego não é sinônimo de não ter bens, de não possuir nada material, ou muito pouco, a direção é outra, busca-se algo mais consistente do que medir a quantidade de coisas que se carrega pela vida. A questão principal do desapego está na relação que estabelecemos com aquilo que desejamos. Não se trata sequer de não desejar, mas sim do como conduzimos o nosso desejo. Na definição clássica de Patanjali, desapego é a capacidade de não desejar aquilo que é visto ou descrito. Há o desejo que surge do nosso contato com os estímulos do mundo, porém, e esse é o ponto fundamental, ele é percebido por uma presença interna que observa e nos permite não responde automaticamente ao pedido do desejo. Desapego é essa habilidade de não reagir de forma impulsiva e identificatória com o pedido feito pelo desejo. O desejo aparece, e seguindo seu fluxo, desaparece, e assim será substituído por outro, e outro, e outro, e assim eternamente. O desejo passa, entretanto, a presença fica.

       Fica fácil perceber e sentir esse processo durante um passeio por qualquer shopping, ou enquanto assistimos TV ou navegamos pela internet, o tempo todo somos estimulados a desejar muito. Se nos identificamos com esse desejo haverá empenho e investimento para realizá-lo, precisamos fazer isso, afinal de contas somos esse desejo. Neste ponto já estamos apegados ao desejo, já o seguramos firmemente nas mãos. No caso do shopping, o resultado objetivo será quase sempre a compra compulsiva do mesmo desnecessário de sempre, enquanto o resultado subjetivo pode ser sentido como uma constate e insaciável insatisfação, que se expressa na espera ansiosa por segurar firmemente nas mãos as próximas sacolas de compras.

        O yoga caminha na contramão desse nosso movimento de apego, quando apresenta meios para que desenvolvamos a capacidade de desapego. O mais interessante é que esse desenvolvimento não precisa ser necessariamente algo conceitual, o que é bom, pois diminui o risco de o desapego se tornar apenas um discurso filosófico e estéril. Dentro das muitas técnicas do yoga, a meditação é a que por excelência desenvolve a prática do desapego. Mas de que forma isso ocorre? O mecanismo básico de toda e qualquer técnica meditativa é a observação de um foco específico, seja ele qual for. Durante a prática da meditação esse foco deve ser mantido, e quando perdido, o que certamente ocorrerá, retornamos à ele, abandonando-se assim aquela distração que nos desviou do foco proposto. Muitas vezes o conteúdo dessa distração é algo banal e desprovido de valor, coisa fácil de renunciar, mas muitas vezes, e é bem aqui que se encontram algumas armadilhas do caminho pela meditação, esses conteúdos são intensos e percebidos como valiosos e importantes, há neles muito desejo investido. De repente lembranças distantes e significativas vêm à mente, um forte colorido emocional é liberado, grandes insights sobre a vida surgem, visões, sensações, e coisas do tipo apresentam-se vividamente no palco da consciência. Conteúdos encantadores que abraçamos e queremos segurar firmemente nas mãos, experiências com as quais nos identificamos e nos apegamos, tal com os produtos expostos na vitrine atraente e chique do shopping. O que fazer então? Praticar o desapego, a renúncia, o abandono, largando o encanto da distração e voltando ao foco combinado. Prática de desapego das experiências internas, daquilo que desejamos como nossa identidade e como nosso ideal, prática de meditação, cultivo do estado meditativo.

         Interessante que esse aspecto tão profundo e transformador ganhou uma definição bem objetiva e dentro dos critérios da pesquisa científica através do trabalho do pesquisador, médico e professor de meditação Roberto Cardoso. Ele propôs uma definição operacional para a prática da meditação, onde necessariamente precisa ocorrer, entre outros aspectos, o foco da atenção em uma âncora e o relaxamento da lógica. Relaxar a lógica é não alimentar as infinitas associações de pensamentos, onde um leva a outro, que se associa a outro, a outro, e assim vai. Relaxar a lógica é praticar o desapego, é renunciar a esse grande prazer que temos de ficar pensando, desejando, pensando, desejando, pensando... Prática essa que não está restrita aos sadhus hindus e nem carece de nenhuma atitude radical, mas que pode ser experimentada na própria pele com apenas um pouco da atenção em si mesmo.   

Marcos Taschetto

6 de mar. de 2016

Esqueça a neurociência



   Recentemente assisti a um simpático vídeo promocional sobre o trabalho de coach fundamentado na neurociência. Nele são apresentadas justificativas para que cultivemos a atitude de gratidão. Quem já experimentou sabe que a gratidão é um profundo sentimento que abre muitas portas, que nos permite novas formas de relacionamento conosco mesmos, com os outros, com nossas experiências e com a vida em geral. A gratidão aparece nas religiões e em muitas tradições da espiritualidade como uma chave para a abertura do coração e um dos meios de acessos a transformações pessoais e ao divino, e, juntamente com a compaixão e o amor, é um dos sentimentos essenciais que pode e deve ser cultivado na subjetividade do praticante. A gratidão dissolve a noção de individualidade e a percepção egóica de se estar à parte da criação.
      Mas o que me importou mesmo nesse vídeo foi a justificativa dada para se falar da gratidão. Deixou-se bem claro de que isso nada tinha haver com religiosidade ou fé, pelo contrário, era algo respaldado pelas ultimas descobertas da neurociência. Após essa importante ressalva o vídeo adverte que devemos sempre tomar decisões neurologicamente corretas, e então apresenta alguns esquemas sobre o funcionamento cerebral, explicando como determinada substância é inibida ou produzida no cérebro e de como isso promove ou não determinados sentimentos. Expõe-se um didático raio-x da fisiologia da gratidão. A neurociência explica a química que produz nossas emoções e demais experiências subjetivas, e ela nos mostra as provas desses dados em imagens ao vivo e a cores. Realmente é um avanço extraordinário que permite a compreensão de muitas questões comportamentais, patológicas e não patológicas, assim como abrir novas perspectivas para o que já se sabia. Atualmente o clássico bordão “Freud explica” parece estar dando a vez para o “a neurociência explica”.
      O vídeo pareceu ter me autorizado a cultivar a gratidão (autorização mais significativa ainda caso eu fosse alguém do mundo corporativo, público aparente do vídeo), e mais do que isso, me explicou de forma simples e acessível como ela funciona e como ela é benéfica e importante para que eu seja feliz. Acho louvável um sentimento como esse ser tema de aulas, de estudos, explicações e treinamentos. A humanidade agradece por isso, pois todos nos precisamos e nos beneficiamos do sentir-se grato.
    Mas faço esse comentário sobre o vídeo da neurociência apenas para fazer uma observação: as informações da neurociência sobre como o cérebro funciona e de como as reações químicas das emoções acontecem não fazem a menor diferença para a nossa experiência direta e pessoal. Nenhuma, nenhuma, nenhuma. Saber a neuroquímica da gratidão não nos faz senti-la, assim como ler um cardápio não nos sacia, embora provoque nossa imaginação e estimule respostas fisiológicas. Saber sobre a fisiologia cerebral a respeito da gratidão, ou da depressão, não interfere em nada em nossa experiência pessoal e intransferível de estar grato ou deprimido.
       Hoje em dia não é difícil encontrar pessoas que se autodiagnosticam como depressivas, e que, além disso, oferecem-nos explicações sobre as causas da própria doença dizendo que é por falta de uma substância no cérebro. Também é cada vez mais frequente pessoas se interessarem e praticarem Yoga e/ou meditação com a justificativa de que essas são atividades com comprovados efeitos benéficos para o funcionamento do cérebro e de todo sistema nervoso. 
    Ao longo dos últimos anos a meditação tem recebido significativa atenção por parte da neurociência através de diversos estudos que explicam e ampliam a compreensão de como ela realmente funciona. Isso é promissor e bastante louvável, tão bom quanto os estudos sobre a gratidão, mas não podemos confundir essas informações sobre a meditação com a meditação e nem o entendimento da fisiologia da gratidão com a gratidão. A imagem mental sobre a gratidão não é a emoção gratidão, o entendimento mental do que é meditação não é o estado meditativo. Nesse sentido, essas informações sobre, a respeito de, podem levantar muita poeira mental e embaraçar o acesso à experiência direta de meditar, ou de sentir-se grato.       O que a gratidão ou a meditação podem nos oferecer vai muito além das sinapses e dos limites do cérebro, mas esse além precisa ser vivido na pele, não pode ser apenas um conteúdo intelectual. Na verdade a meditação e a gratidão vão além do conteúdo mental, e o seu grande valor é exatamente esse, possibilitar a transcendência do nível mental e racional de consciência.
      Que os estudos e as descobertas da neurociência continuem, e que essas informações possam orientar novas propostas de políticas e estratégias de clinicas, hospitais, universidades, empresas, escolas, governos e da sociedade em geral. Mas quando você for meditar, esqueça a neurociência e todos os benefícios comprovados da meditação. Quando for para a vida, para a experiência imediata de sentir (que é quando a vida vale à pena) esqueça a neurociência e seus esquemas. Mais do que isso, esqueça principalmente quem, ou aquilo, que você supõem ser.

Marcos Taschetto


20 de fev. de 2016

Yoga e Psicologia

No ano de 2015 o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo realizou quatro seminários sobre as relações entre a psicologia, laicidade e os saberes tradicionais. Uma valorosa iniciativa para ampliar e enriquecer o entendimento e a atuação da psicologia no Brasil. 
No terceiro seminário apresentei este texto sobre a proximidade entre a psicologia e o yoga. 
   

YOGA E PSICOLOGIA: TRADIÇÃO E CIÊNCIA E A MENTE COMO PONTE
Marcos Fioravanti Taschetto


Resumo O objetivo desde texto é apontar para uma aproximação entre um saber tradicional, o yoga, e o saber científico psicológico. Após um breve histórico do yoga, de seus primórdios até os dias atuais, são apresentados alguns de seus fundamentos e a indicação de possíveis relações destes com a atual psicologia.

Breve definição e histórico de uma tradição viva

Definir o yoga é uma tarefa complexa, considerando sua vasta história e sua multiplicidade de expressões e práticas. De acordo com Feuerstein (2005b) o yoga é uma corrente de espiritualidade que está enraizada e presente nas práticas do hinduísmo, budismo, jainismo e sikhismo, embora não se confunda ou se limite a nenhuma dessas tradições religiosas.

Eliade (1996) ressalta que a metafísica indiana compreende a condição humana como essencialmente vinculada ao sofrimento, entretanto essa constatação não gerou filosofias com perspectivas pessimistas ou desesperançosas, mas sim propostas de salvação e liberação desse sofrer inerente ao humano. O yoga, dentro dessa metafísica, é entendido como a soma dos caminhos e meios técnicos para se atingir a liberação desse sofrimento. O termo yoga é derivado da raiz sânscrita yuj, “ligar”, “manter unido”, “atrelar” e serve em geral para designar toda técnica de ascese e métodos de meditação. Esse conjunto de práticas não formou um todo homogêneo, pelo contrário, elas foram ganhando distintas expressões nas múltiplas correntes e movimentos místicos indianos, existindo assim numerosas formas de yoga. Entre elas destaca-se o “yoga clássico” elaborado por Patanjali, um sistema que se tornou referência para a definição, compreensão e localização do yoga dentro da ampla e diversificada espiritualidade indiana.

As origens do yoga perdem-se no tempo. Teve sua origem nas culturas do subcontinente indiano e lá vem se amalgamando e se desenvolvendo ao longo dos últimos cinco mil anos. Eliade (1996) relaciona vários aspectos da ancestral cultura aborígene e xamânica indiana com o posterior desenvolvimento das práticas e técnicas do yoga. Rudimentos do que viria a se estabelecer como yoga já estão presentes também nos Vedas, conjunto de escrituras que estruturam todos os aspectos da cultura hindu. Posteriormente, com os Upanishads, o yoga começa e se definir como uma prática de meditação voltada para a libertação do sofrimento humano. Por volta do século II d.C. as muitas práticas e saberes existentes na época foram sistematizados pelo sábio Patanjali no seu tratado Yoga sutra. Com esse texto Patanjali consegue estabelecer o yoga como uma filosofia reconhecida e estruturada, que passa a ser considerada então como um dos seis pontos de vista (darshana) do hinduísmo ortodoxo.

No decorrer desse processo histórico o yoga acabou por desenvolver diferentes metodologias para atingir a sua meta, o fim do sofrimento, e entre elas destacam-se o próprio yoga proposto por Patanjali, o yoga-real (Raja-yoga), assim como o yoga devocional (Bhakti-yoga), o yoga da sabedoria (Jnana-yoga), o yoga da ação (Karma-yoga), o yoga dos sons poderosos (Mantra-yoga), o yoga da força (Hatha-yoga), entre outros. Este último e mais recente ramo de yoga, o hatha, surgiu no período medieval e foi fruto do movimento tântrico, passando a incluir e abordar em suas práticas a dimensão corporal, presente nas técnicas de posturas corporais (asana) e nos exercícios de controle respiratório (pranayama), entre muitas outras técnicas mais sutis.

Broad (2013) descreve os momentos iniciais do que é considerado o yoga moderno através de alguns eventos isolados, mas que acabaram se somando e dando novo impulso, vigor e direção à prática milenar. Um importante detalhe dessa nova etapa de desenvolvimento do yoga é a sua relação com o a cultura ocidental, algo inédito até então. Em 1924 J. Gune funda na Índia uma escola e centro de estudos e pesquisas científicas sobre o yoga e seus efeitos positivos na saúde. A partir de 1931, o professor de sânscrito e yoga T. Krishnamacharya passa a ensinar seu estilo de posturas em sequência associadas a questões de saúde. Ele percorrer boa parte da Índia fazendo demonstrações das posturas, e teve entre seus discípulos quatro dos grandes responsáveis pela propagação do estilo hatha-yoga por todo o mundo: B.K.S. Iyengar, Pattabhi Jois, T.K.V. Desikachar e Indra Devi. Vale lembrar que esse hatha-yoga moderno, que se popularizou e ganhou o mundo, é uma versão mais limpa e acessível do yoga tântrico. Ele passou por uma “repaginação”, onde alguns aspectos da filosofia e da cultura hindu foram suavizados, tais como o ascetismo e o misticismo de libertação, e outros aspectos mais ocidentais foram acrescentados, tais como os benefícios para a saúde, a conquista de relaxamento e bem estar, e as citações e associações da prática com a ciência médica.

Nos anos 60 o yoga e a meditação, assim como várias outras correntes orientais e tradicionais, ganham espaço e adesão entre a juventude através do movimento da Contracultura, e passaram a fazer parte das chamadas práticas alternativas. A partir dos anos 70 pesquisas científicas começam a esclarecem e a popularizar os benéficos efeitos fisiológicos da prática da meditação e do yoga. Gradativamente o yoga foi ganhando reconhecimento como uma prática segura e capaz de “melhorar o equilíbrio, reduzir a fadiga, diminuir a ansiedade, conter o estresse, melhorar o humor e o sono, reduzir a dor, baixar o colesterol e, de forma geral, melhorar a qualidade de vida” (Broad, 2013). Atualmente o yoga, além de ser praticado em todo o mundo em estúdios e academias, é indicado e aplicado em hospitais, clínicas, centros de reabilitação, entidades educacionais, em diversos órgãos e entidades públicas e privadas, e é uma das práticas que têm espaço na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) dentro do SUS.  

O saber tradicional

Em seu percurso histórico o yoga passou por muitas transformações e adaptações, tais como as que se evidenciam no contexto atual do yoga moderno. Diante desse fato, justifica-se a importância do resgate de seus fundamentos e diretrizes básicas. Os conceitos essenciais para a compreensão da prática e objetivos do yoga estão na definição dada por Patanjali logo no inicio do Yoga Sutra, onde temos:

 1.2 - Yoga é a contenção (niridhah) das flutuações (vrittis) da consciência (chitta)

 1.3 – Então, “Aquele que vê” (o Si Mesmo) estará situado em sua natureza real

1.4 - Em outros momentos (o Si Mesmo) conforma-se às flutuações (Feuerstein, 2005a)

No aforismo 1.2 Patanjali define yoga a partir do conceito chitta, termo traduzido como consciência, mais especificamente como mente ou campo mental, o palco onde se desenrolam as produções e conteúdos psicomentais. Uma característica fundamental de chitta é sua inconstância, pois sua natureza é de movimento e mudança constante. Este aspecto oscilante de chitta recebe o nome de vritti, as flutuações ou modificações da mente. O campo mental é entendido então como um palco onde as encenações, os dramas e os atores não param de se revezar e de atuar, ou seja, a mente não pára de produzir e alternar conteúdos mentais. Esses conteúdos, através de associações entre si, criam identificações e passam a ser determinantes para a percepção, o julgamento, o sentir e o agir do sujeito. A produção mental em cadeia cria assim a vivência de uma realidade interna pessoal que se mantém, uma noção de individualidade manifesta como um eu contínuo (asmita).

Se a mente apresenta-se como constante inconstância, sendo muitas vezes pura turbulência, Patanjali afirma então que yoga é a contenção, a restrição ou o recolhimento do fluxo desse constante movimento. Nirodhah é o controle das vrittis de chitta. Entretanto, esse controle não diz respeito à cessação do pensar ou à destruição da capacidade mental, mas aponta para uma experiência que está além dos conteúdos mentais e dos recursos do pensar. No aforismo 1.3 Patanjali descreve que com a contenção dos fluxos mentais “Aquele que Vê” se revela. Essa condição de testemunhar a experiência mental indica uma consciência diferente daquela de estar envolvida no fluxo mental, esta não é mais a condição de participante do fluxo e seus conteúdos, mas de observador deste. No samkhya, filosofia irmã do yoga, esse aspecto observador recebe o nome de purusha, que pode ser traduzido por homem, mas indicando seu princípio transcendente, o Si Mesmo, aquilo que está além das identificações corporais, emocionais e mentais. Yoga é a revelação de purusha, é o processo que leva o praticante identificado com sua natureza física, emocional e mental a poder vivenciar o ser testemunha de si, a estar como Si Mesmo. Portanto, longe de parar de pensar ou de limitar-se ao estabelecimento de estados de relaxamento mental, embora isso se dê inevitavelmente, a contenção das flutuações mentais mostra-se como um recurso que permite o acesso a uma nova identidade transcendente. No aforismo 1.4 Patanjali mostra que o estado ordinário de consciência é o de identificação com as variações mentais, onde “Aquele que Vê” encontra-se encoberto pela poeira da movimentação e turbulência mental. Este estado é de “não yoga”, de não união, estado em que se mantém o equívoco e a limitação da identidade mental, onde “eu sou o que penso que sou”.

Ao longo do Yoga Sutra são utilizados ainda os conceitos de impressões mentais (sanskara) e de impregnações latentes (vasana) referindo-se aos conteúdos inconscientes que produzem e mantém as identificações mentais. São descritos também diferentes processos mentais (klesa), diversos estados e níveis de consciência, como a concentração (dharana), a meditação (dhyana), os graus de êxtase do Si Mesmo (samadhi) e o estado de integração, transcendência e libertação final (kaivalyam), meta última de toda prática de yoga. Há ainda um capítulo quase que todo dedicado aos vários poderes psíquicos (siddhi) que a prática avançada pode despertar no praticante, assim como a descrição de dez princípios éticos fundamentais (yama e niyama), sem os quais a prática de técnicas torna-se não apenas superficial, mas também facilmente equivocada e prejudicial. Esses princípios não são utilizados como regras morais fechadas em si, mas como fonte de auto-observação, identificação e transformação de padrões de comportamento.

Relações

Após essa pequena, fragmentada e brevíssima exposição fica evidente que o yoga busca algo distinto da boa forma física, ou mesmo do relaxamento, da diminuição do stress e do bem estar, muito embora possibilite todos esses benefícios com qualidade. Para viabilizar a sua meta de liberação do sofrimento disponibiliza alguns recursos teóricos e práticos que o aproximam, profunda e intimamente, do que entendemos hoje como psicologia, principalmente da psicologia clínica em suas diversas abordagens. O yoga e a psicoterapia se alinham nesse preciso e típico momento humano, o de constatar o sofrimento e as limitações da própria condição e buscar um caminho de alívio, significação e salvação. Os meios para tal empreitada são múltiplos, assim como são as muitas linhas do yoga e da psicoterapia, porém, em todas elas, de alguma forma, há algum trabalho de transformação do aparelho psicomental. Apesar das divergências entre as muitas cartografias desse aparelho, e conseqüentes metodologias, o trabalho se dá através de algum aspecto dele, podendo ser este um ponto em comum entre yoga e psicoterapia, assim como a necessidade de que esse trabalho não seja uma especulação, mas sim experienciado em primeira pessoa.

Na relação entre yoga e psicologia nota-se também a proximidade existente entre algumas de suas práticas com determinadas escolas psicológicas, sendo possível fazer paralelos entre aspectos das práticas do yoga com algumas das escolas que compõem cada uma das quatro forças da psicologia. Nas abordagens humanistas e transpessoais, terceira e quarta forças, essa relação fica mais visível, quer seja pela visão de homem e de mundo, quer seja pelos métodos e técnicas adotados. Foco no aqui agora, reconhecimento da terapêutica dos diferentes estados de consciência, transformação psíquica pelo trabalho corporal, respiratório e energético, utilização de recursos como rituais e símbolos, abertura e interesse pelos potenciais humanos últimos e por conceitos como intuição, auto-realização felicidade, sentido da vida e transcendência, entre outros, são temas recorrentes nessas escolas e possuem paralelos no yoga, ou mesmo foram inspirados em seus fundamentos. Na primeira força, o behaviorismo, a busca da clareza e o controle dos processos mentais, cognitivos e comportamentais se assemelham aos percursos e resultados de algumas formas de meditação, e, por esse motivo mesmo, técnicas de meditação do tipo mindfulness vêm sido incorporadas entre seus recursos terapêuticos. Já na segunda força, a psicanálise, a ponte se faz na importância dos conteúdos e dos processos inconscientes que guardam grande força emocional e poder identificatório. Pode-se apontar também para o diálogo entre a experiência dos poderes psíquicos descritos, comuns em diversas práticas de espiritualidade e misticismo, com os estudos da psicologia Anomalística.

Por sua vez, através do conceito de identidade é possível fazer uma importante diferenciação entre esses dois saberes. Enquanto que o yoga tem como meta final a experiência da identidade última, aquela que está além de todas as identidades parciais e restritas da individualidade nos níveis biológico, psicológico e social, a psicologia tem como proposta e meio de intervenção a facilitação na diferenciação, reconhecimento e fortalecimento dessas mesmas identidades. Metas diferentes que podem encontrar, no momento atual, uma valiosa, inédita e necessária integração e complementaridade.

Conclusão  

O diálogo da psicologia com esse saber tradicional, yoga e meditação, pode ser uma rica oportunidade de questionamento e ampliação da psicologia sobre seu objeto de estudo, a psique, ao mesmo tempo em que esta mantém seu olhar, compreensão e intervenção nas demandas e desafios da nossa complexa sociedade contemporânea. Porém, esse diálogo entre yoga e psicologia pode, e precisa, ir além do viés da aplicação de “técnicas para a saúde, relaxamento e bem estar”. Mais do que esses benefícios, já bem comprovados, o yoga aponta diretamente para o caminho da experiência da transcendência e suas questões práticas, fundamentado em séculos de experimentação.


Referências    

Barbosa, CEG. Os Yogasutras de Patanjali. São Paulo: edição do autor, 2006.

Boainain Jr, E. Tornar-se transpessoal: transcendência e espiritualidade na obra de Carl Rogers. São Paulo: Summus, 1998.

Broad, W. A moderna ciência do yoga: os riscos e as recompensas. Rio de Janeiro: Valentina, 2013.

Dauster, G. Yoga Sutra de Patanjali: uma abordagem prática. Chapada dos Veadeiros: Paraíso dos Pândavas, 2007.

Eliade, M. Yoga: imortalidade e liberdade. São Paulo: Palas Athena, 1996.

Feuerstein, G. A tradição do yoga: história, literatura, filosofia e prática. São Paulo: Pensamento, 2005a.

Feuerstein, G. Uma visão profunda do yoga: teoria e prática. São Paulo: Pensamento, 2005b.

Hall, CS e Lindez, G. Teorias da personalidade (vol.2). São Paulo: EPU, 1984.


Manual de práticas integrativas e complementares no SUS. Secretaria da Saúde, Governo do Espírito Santo, 2013.