12 de mar. de 2017

Yoga, uma janela para si mesmo e uma janela para o outro


              
              Há alguns anos, talvez uns dez, recebi um adolescente para psicoterapia. Ele era grandalhão e introspectivo e tinha uma expressão que mesclava tristeza, amorosidade e curiosidade. Após algumas sessões, que me pareceram pouco produtivas, me vi no meio de uma sessão especialmente difícil, onde ele praticamente nada falou. Seu silêncio foi me deixando bastante desconfortável e quando me dei conta estava pressionando-o com inúmeras e insistentes perguntas, numa vã tentativa de achar qualquer gancho para uma conversa. Para cada pergunta minha uma resposta monossilábica dele. Minha fala era puramente especulativa, interrogatória na verdade, e buscava descobrir uma lógica para explicar alguns de seus comportamentos. Imagino que devo ter sido uma companhia bem inconveniente para ele naquele momento. Ao perceber que meu ataque “terapêutico” só contribuía para afastar qualquer possibilidade de diálogo e aproximação com ele, desisti de tentar qualquer coisa e também fiquei em silêncio. Porém meu silêncio era de um perdedor, de quem foi incapaz de dar conta de sua tarefa. Ficamos alguns minutos assim, ele no seu mundo e eu no meu, até que o gancho e a abertura para um verdadeiro diálogo surgiu.                                            

       Minha sala tinha uma janela para o quintal com algumas árvores que sempre recebiam a visita de passarinhos. Enquanto estávamos em silêncio percebi o momento em que seus olhos ascenderam-se quando ele avistou algo lá. Era um sanhaço. E assim a mágica se deu! Ele amava animais, em especial pássaros, e após ver o sanhaço começou a me contar um pouco do que sabia sobre eles e das muitas experiências que teve com animais na roça da família. Ele se abriu sem o menor esforço ao me falar do que mais amava. Era quase inacreditável que estávamos ainda na mesma sessão. Nas sessões posteriores trabalhamos vários conteúdos que ele trouxe espontaneamente e continuamos por mais uns três meses. Paramos nas férias e depois não tive mais contato com ele. Um ano depois recebi uma mãe querendo psicoterapia para o filho, ela me procurou por ter percebido uma grande mudança no filho de sua amiga, o adolescente do sanhaço.

         Essa sessão me marcou bastante e eu ainda hoje me emociono ao me lembrar da pulsação de vida e abertura do meu paciente após a visita do sanhaço. A partir dela fiz algumas reflexões que me trouxeram esclarecimentos que considero bastante importantes, entre eles:

  • o valor da capacidade de silenciar, escutar e esperar o tempo do outro ou da situação se desenvolver;
  • reconhecer que posso facilmente atropelar o outro com minha ansiedade, minhas necessidades e especulações mentais sobre como as coisas deveriam ser; 
  • a existência de muitos iniciadores e muitas variáveis, sendo várias consideradas improváveis, envolvidas no processo de transformação das pessoas;
  • reconhecer que nunca sei ou saberei exatamente o potencial que o outro traz dentro de si, podendo na melhor das hipóteses fazer apenas uma ideia sobre;
  • o que entendo como desistência, fim, fracasso ou perda pode ser na verdade o começo para algo que não estava nos meus planos;
  • muito dos importantes aspectos da transformação do outro, e da minha própria transformação pessoal, não dependem do meu esforço e da minha intenção, mas da minha abertura e apoio.

      Esses esclarecimentos se relacionam não apenas com o contexto da psicoterapia, mas associam-se diretamente com o desenrolar de nossas experiências e relações na vida cotidiana. Mais ainda, relacionam-se intimamente com a prática da meditação e os princípios do Yoga, ao evidenciar a grande participação e influência que nossas imagens, padrões e conclusões mentais exercem sobre todas as nossas atitudes, incluindo as envolvidas na comunicação e contato com os outros. Assim, é válido afirmar que a prática de meditação e Yoga contribuem em muito para melhorar, ampliar e aprofundar o potencial de comunicação com nosso mundo interno e com todos aqueles com quem nos relacionamos.            
             
           
          Foi considerando a riqueza e importância dessa relação entre a prática da meditação e a comunicação humana que elaborei o workshop “Aprimorando a comunicação – uma ponte com a meditação”. Nele exploraremos, de forma direta e vivencial, um pouco da capacidade de nos comunicar com o outro e com nosso próprio mundo interno pela perspectiva inclusiva e aberta da meditação. 


Marcos Taschetto



1 de mar. de 2017

Indo um pouco além


    

       A Quarta-feira de Cinzas demarca o início da Quaresma, período de mais de quarenta dias em que os católicos se preparam para a Páscoa. Para essa preparação são sugeridos momentos de reflexão, interiorização, oração e penitência. Essas são práticas conhecidas e utilizadas há milhares de anos pela espiritualidade e religiosidade universal. O devoto deve se propor a experimentar períodos de algum isolamento para confrontar-se consigo mesmo e com seus limites através de algumas práticas introspectivas. Tradicionalmente essa proposta está associada à atitude por vezes extremas e severas de ascese e purificação, partindo do princípio de que algo errado e pecaminoso precisa ser expurgado. 

          Nos primórdios do Yoga, antes ainda de ser chamado de Yoga, essa prática era conhecida como tapas, palavra que significa torna-se ardente, luminoso, radiante. Tapas é também um dos dez princípios éticos do Yoga e sua tradução é algo como auto superação ou auto esforço. No Yoga milenar a atitude de tapas associou-se fortemente com a prática de austeridade, que facilmente pode ganhar pitadas de auto agressão e punição impostas ao corpo e suas necessidades básicas. A questão mais importante não está na prática de tapas em si, que entendo ser essencial para a maturidade e desenvolvimento humano, mas na prévia consideração moral de que algo errado precisa ser punido e corrigido. Se tapas não for encarado como punição, pode ser então aproveitado como valioso instrumento de libertação.

       Essa proposta não precisa ser um exercício heroico e espetacular, nem associar-se ao sofrimento ou a quebrar grandes barreiras de uma só vez. Basta um pequeno novo combinado consigo mesmo para algo de novo já acontecer. Tapas é um convite para aproximar-nos daquilo que a rotina e as exigências do dia a dia nos afastam, a percepção sobre quem somos e como estamos. É um recurso que se bem aproveitado, ascende nossa luz e calor.  

        O mecanismo é simples, combine consigo mesmo uma pequena frustração e a cumpra. Só isso, uma frustração auto imposta. É como você criar uma nova regra para um jogo que perdeu a graça por ter ficado previsível e sem desafios. Qual a função dessa nova regra?  Recriar e reanimar o jogo, pedindo de você mais atenção, dedicação e respostas novas. Tapas é uma nova regra no jogo rotineiro da nossa vida diária, jogo que nos consome e engole, e não uma pena a ser cumprida. Tapas sem punição, sem penitência (apesar do significado da palavra tapas em português casar muito bem com a ideia de punição). Essa nova regra pode ser deixar de fazer ou passar a fazer algo, seja no âmbito mental, emocional ou comportamental. O que gera transformação é manter o combinado e observar o que acontece quando passamos por essa frustração auto imposta, quando sustentamos frustrar nosso próprio desejo.    

                 Boa Quaresma e bom tapas para todos nós!

Marcos Taschetto