22 de fev. de 2015

A quaresma e o deserto




     Na ultima quarta feira (18 de fevereiro) os católicos entraram no período da quaresma. Serão quarenta dias de preparação para a Páscoa, a grande festa cristã. Essa preparação, entre outros símbolos, se fundamenta nos quarenta dias de introspecção, austeridades e recolhimento que Jesus passou no deserto antes de começar sua vida pública. Também foi nesse retiro no deserto que Jesus confrontou-se com as três tentações do demônio.

     Passar quarenta dias no deserto implica em submeter-se à experiências das quais estamos bem distantes em nossos confortáveis, distraídos, corridos e atropelados dias. Estar no deserto é uma forma radical de lidar consigo mesmo, de aproximar-se nu e desarmado da solidão, da falta, do medo e de muitos, até então silenciosos, fantasmas. É viver na pele a privação das necessidades básicas de alimentação, conforto, segurança e proteção que nos parecem tão imprescindíveis. E mais do que isso, no deserto, o eu e todas suas construções e convicções, é posto a prova impiedosamente à luz do penetrante sol.

     Jesus abriu mão de prazeres e certezas e recolheu-se no deserto em oração e silêncio. Lá se fortaleceu, não apenas por ter sobrevivido fisicamente, mas principalmente por ter confrontado suas profundas dúvidas, na forma de tentações demoníacas, e diante delas afirmar e manter sua missão. Só depois disso partiu para o mundo compartilhando e anunciando sua luz. Essa é uma cena arquetípica, não só restrita à espiritualidade, mas pertinente à necessidade humana de amadurecimento. Esta cena segue um certo roteiro, que passa pelo recolhimento e afastamento do mundo, desapego do que se tinha, entrega e fé a esse processo, confronto com as próprias limitações, purificação, transformação, afirmação de um novo estado de ser e, por fim, a volta ao mundo. Quantas tradições não repetem, a milhares de anos, essa mesma jornada em suas iniciações e treinamentos? Quantas vezes, ao longo da vida, não passamos por algo parecido, embora em escala bem menor, naqueles momentos que antecedem a importantes mudanças?

       Parece-me que atualmente essa imagem de Jesus no deserto está um pouco esquecida, mesmo tendo o cristianismo em sua história uma forte tradição de místicos e padres do deserto. No oriente essa é uma prática mais familiar, que se expressa tanto na forma de vida de eremitas, monges e saddhus assim como na retirada e estadia ocasional e breve de pessoas “mundanas” em monastérios e asharams. Pode-se dizer que nós humanos precisamos e sempre estivemos, de alguma forma, perto do deserto.

       A quaresma pode ser uma aproximação moderna do deserto. Praticar um pouco de jejum, orar mais, ficar em silêncio, abrir espaço para o perdão, se abster de algo prazeroso, fazer algumas mudanças de comportamento, tudo isso pode funcionar como estar no deserto. Tudo isso pode trazer mais vigor para nossa vida interna, mais proximidade do espírito e de tudo aquilo que importa de fato. Essa ida ao deserto só não precisa ser mobilizada pelas equivocadas intenções de mortificação, de penitência e de culpa. Nada há para ser punido ou castigado, pelo contrário, muito há para ser descoberto, revelado, saboreado e vivido, e o deserto apenas ajuda a cozinhar um pouco mais rápido.

Marcos Taschetto



10 de fev. de 2015

A Cantareira vazia nos enche, de angústia


Este início de ano traz uma dose de incerteza maior do que nos anos anteriores. Como todo começo de ano, pairam no ar algumas expectativas sobre o que virá pela frente, o que esperar e sobre quais serão as possíveis dificuldades. Mas, parece-me que neste 2015 temos alguns dados que intensificam essa incerteza. Refiro-me às mudanças políticas e à questão da água.

Percebo essa incerteza nas conversas informais e, de modo mais próximo, no consultório. O consultório psicológico é como uma janela que oferece generosa visão dos bastidores sociais. Aquilo que circula pela comunidade meio sem forma e sem nome acaba ganhando uma cara nas sessões. E neste início de ano essa cara parece ser de angústia.

Quando olhamos para as questões políticas e econômicas surge um misto de sentimentos, que passam pela raiva, pelo insegurança e pelo abandono. Mas esta raiva é uma raiva que não produz ação, apenas queixas e críticas situacionais, e que assim alimentam a indignação, sem ação. Insegurança e abandono em não se sentir representado e protegido, em sentir-se sozinho, e pior, em sentir-se traído pelos políticos, tendo-os como inimigos e não como aliados. Às vezes quase dá para ouvir: “e quem vai cuidar da gente?”, “quando alguém vai fazer alguma coisa?”

Essas questões políticas e esses sentimentos já são nossos conhecidos, não há nada de muito novo nessa situação. O que temos de novo mesmo é a questão da água. O que parecia uma ameaça distante agora é tema urgente de qualquer conversa. A falta de água em São Paulo é algo surreal, quase inacreditável. Esse absurdo é consequência direta de atitudes (ou melhor, de não atitudes) politicas, é mais uma das consequência da situação descrita acima, e da qual dizemos já estar acostumados. Mas além desse aspecto político há uma questão mais íntima, e diria mais primitiva, com toda essa crise da escassez da água.

A ameaça real e tão próxima de ficar sem água, de ter reservatórios, rios e fontes secando, de passar por longas estiagens e racionamentos, tudo isso é uma profunda ameaça à vida em si. A preocupação imediata com o próprio conforto, do qual já somos dependentes, é logo ultrapassada diante das evidentes constatações do grande impacto que a falta de água provocará na produção alimentar, na vida das cidades, na produção energética, na economia em geral, no meio ambiente...

Essa ameaça a vida, tão clara e próxima e ao mesmo tempo tão incerta, produz angústia. A palavra angústia é derivada do latim “angor“ e se refere à sensação de aperto, de opressão e de sufocamento. Alguém angustiado é alguém que está mergulhado em uma difusa tensão, com pouca clareza sobre essa forte sensação, e principalmente, sem muita noção do que fazer para sair disso. A angústia está fortemente ligada à impotência, a não possibilidade de ação, de enfrentamento. Se diante da ameaça sinto que pouco posso fazer, fico então refém dessa situação, congelado, apertado, imobilizado. 

A angústia possui um detalhe fundamental: nela quase não respiramos. Angústia é aperto, e esse aperto é físico, muscular, não é uma metáfora. Apertado não respiro, fico sufocado, com pouco ar, com o corpo em estado de alerta, a vida em risco real. Determinada respiração produz angústia e a angústia produz determinada respiração, essa é uma via de mão dupla.

A angústia foi um dos temas centrais do Existencialismo, corrente filosófica européia que tornou-se popular nos ares das duas Grandes Guerras Mundiais. Hoje as guerras continuam, mas o que parece ser, ou deveria ser, a nossa "Grande Guerra Mundial" é a questão ambiental. Dela não há escapatória e dela não sairá nenhum vencedor. Ou todos abraçamos a causa e fazemos o que é possível ou todos pereceremos. Essa ameaça é global, imediata, irreversível, imprevisível, impactante e, portanto, profundamente angustiante. A falta de água em nossa torneira é uma pequena gota de todas essas transformações em nossa complexa biosfera.  

Diante desse enorme desafio, podemos, e precisamos, tomar muitas decisões, mudar muitas atitudes, achar muitas soluções. Mas essas ações ficarão bastante comprometidas se não respirarmos, se ficarmos imobilizados pela angústia e perdidos em pensamentos catastróficos e recheados de impotência. Diante da ameça precisamos respirar! Reconhecer a angústia, liberar a respiração e, de posse de mais clareza, agir. Agir conforme a nossa criatividade, talentos, valores e possibilidades permitirem.