No ano de 2015 o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo realizou quatro seminários sobre as relações entre a psicologia, laicidade e os saberes tradicionais. Uma valorosa iniciativa para ampliar e enriquecer o entendimento e a atuação da psicologia no Brasil.
No terceiro seminário apresentei este texto sobre a proximidade entre a psicologia e o yoga.
YOGA E PSICOLOGIA: TRADIÇÃO E
CIÊNCIA E A MENTE COMO PONTE
Marcos
Fioravanti Taschetto
Resumo O
objetivo desde texto é apontar para uma aproximação entre um saber tradicional,
o yoga, e o saber científico psicológico. Após um breve histórico do yoga, de seus
primórdios até os dias atuais, são apresentados alguns de seus fundamentos e a
indicação de possíveis relações destes com a atual psicologia.
Breve definição e histórico de
uma tradição viva
Definir
o yoga é uma tarefa complexa, considerando sua vasta história e sua
multiplicidade de expressões e práticas. De acordo com Feuerstein (2005b) o
yoga é uma corrente de espiritualidade que está enraizada e presente nas
práticas do hinduísmo, budismo, jainismo e sikhismo, embora não se confunda ou
se limite a nenhuma dessas tradições religiosas.
Eliade
(1996) ressalta que a metafísica indiana compreende a condição humana como essencialmente
vinculada ao sofrimento, entretanto essa constatação não gerou filosofias com
perspectivas pessimistas ou desesperançosas, mas sim propostas de salvação e
liberação desse sofrer inerente ao humano. O yoga, dentro dessa metafísica, é entendido
como a soma dos caminhos e meios técnicos para se atingir a liberação desse
sofrimento. O termo yoga é derivado da raiz sânscrita yuj, “ligar”, “manter
unido”, “atrelar” e serve em geral para designar toda técnica de ascese e
métodos de meditação. Esse conjunto de práticas não formou um todo homogêneo,
pelo contrário, elas foram ganhando distintas expressões nas múltiplas
correntes e movimentos místicos indianos, existindo assim numerosas formas de
yoga. Entre elas destaca-se o “yoga clássico” elaborado por Patanjali, um
sistema que se tornou referência para a definição, compreensão e localização do
yoga dentro da ampla e diversificada espiritualidade indiana.
As
origens do yoga perdem-se no tempo. Teve sua origem nas culturas do
subcontinente indiano e lá vem se amalgamando e se desenvolvendo ao longo dos
últimos cinco mil anos. Eliade (1996) relaciona vários aspectos da ancestral cultura
aborígene e xamânica indiana com o posterior desenvolvimento das práticas e
técnicas do yoga. Rudimentos do que viria a se estabelecer como yoga já estão
presentes também nos Vedas, conjunto de escrituras que
estruturam todos os aspectos da cultura hindu. Posteriormente, com os Upanishads,
o yoga começa e se definir como uma prática de meditação voltada para a
libertação do sofrimento humano. Por volta do século II d.C. as muitas práticas
e saberes existentes na época foram sistematizados pelo sábio Patanjali no seu
tratado Yoga sutra. Com esse texto Patanjali consegue estabelecer o yoga
como uma filosofia reconhecida e estruturada, que passa a ser considerada então
como um dos seis pontos de vista (darshana) do hinduísmo ortodoxo.
No
decorrer desse processo histórico o yoga acabou por desenvolver diferentes metodologias
para atingir a sua meta, o fim do sofrimento, e entre elas destacam-se o próprio
yoga proposto por Patanjali, o yoga-real (Raja-yoga), assim como o yoga
devocional (Bhakti-yoga), o yoga da sabedoria (Jnana-yoga), o yoga da
ação (Karma-yoga), o yoga dos sons poderosos (Mantra-yoga), o yoga da
força (Hatha-yoga), entre outros. Este último e mais recente ramo de
yoga, o hatha, surgiu no período medieval e foi fruto do movimento
tântrico, passando a incluir e abordar em suas práticas a dimensão corporal,
presente nas técnicas de posturas corporais (asana) e nos exercícios
de controle respiratório (pranayama), entre muitas outras
técnicas mais sutis.
Broad
(2013) descreve os momentos iniciais do que é considerado o yoga moderno através
de alguns eventos isolados, mas que acabaram se somando e dando novo impulso, vigor
e direção à prática milenar. Um importante detalhe dessa nova etapa de
desenvolvimento do yoga é a sua relação com o a cultura ocidental, algo inédito
até então. Em 1924 J. Gune funda na Índia uma escola e centro de estudos e
pesquisas científicas sobre o yoga e seus efeitos positivos na saúde. A partir
de 1931, o professor de sânscrito e yoga T. Krishnamacharya passa a ensinar seu
estilo de posturas em sequência associadas a questões de saúde. Ele percorrer
boa parte da Índia fazendo demonstrações das posturas, e teve entre seus
discípulos quatro dos grandes responsáveis pela propagação do estilo hatha-yoga
por todo o mundo: B.K.S. Iyengar, Pattabhi Jois, T.K.V. Desikachar e Indra
Devi. Vale lembrar que esse hatha-yoga moderno, que se
popularizou e ganhou o mundo, é uma versão mais limpa e acessível do yoga
tântrico. Ele passou por uma “repaginação”, onde alguns aspectos da filosofia e
da cultura hindu foram suavizados, tais como o ascetismo e o misticismo de
libertação, e outros aspectos mais ocidentais foram acrescentados, tais como os
benefícios para a saúde, a conquista de relaxamento e bem estar, e as citações
e associações da prática com a ciência médica.
Nos
anos 60 o yoga e a meditação, assim como várias outras correntes orientais e
tradicionais, ganham espaço e adesão entre a juventude através do movimento da
Contracultura, e passaram a fazer parte das chamadas práticas alternativas. A
partir dos anos 70 pesquisas científicas começam a esclarecem e a popularizar
os benéficos efeitos fisiológicos da prática da meditação e do yoga. Gradativamente
o yoga foi ganhando reconhecimento como uma prática segura e capaz de “melhorar
o equilíbrio, reduzir a fadiga, diminuir a ansiedade, conter o estresse,
melhorar o humor e o sono, reduzir a dor, baixar o colesterol e, de forma
geral, melhorar a qualidade de vida” (Broad, 2013). Atualmente o yoga, além de
ser praticado em todo o mundo em estúdios e academias, é indicado e aplicado em
hospitais, clínicas, centros de reabilitação, entidades educacionais, em
diversos órgãos e entidades públicas e privadas, e é uma das práticas que têm
espaço na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) dentro
do SUS.
O saber tradicional
Em
seu percurso histórico o yoga passou por muitas transformações e adaptações,
tais como as que se evidenciam no contexto atual do yoga moderno. Diante desse
fato, justifica-se a importância do resgate de seus fundamentos e diretrizes
básicas. Os conceitos essenciais para a compreensão da prática e objetivos do
yoga estão na definição dada por Patanjali logo no inicio do Yoga Sutra, onde
temos:
1.2 - Yoga é a contenção (niridhah) das flutuações (vrittis) da consciência (chitta)
1.3
– Então, “Aquele que vê” (o Si Mesmo) estará situado em sua natureza real
1.4
- Em outros momentos (o Si Mesmo) conforma-se às flutuações
(Feuerstein, 2005a)
No
aforismo 1.2 Patanjali define yoga a partir do conceito chitta, termo traduzido
como consciência, mais especificamente como mente ou campo mental, o palco onde
se desenrolam as produções e conteúdos psicomentais. Uma característica fundamental
de chitta
é sua inconstância, pois sua natureza é de movimento e mudança constante.
Este aspecto oscilante de chitta recebe o nome de vritti,
as flutuações ou modificações da mente. O campo mental é entendido então como
um palco onde as encenações, os dramas e os atores não param de se revezar e de
atuar, ou seja, a mente não pára de produzir e alternar conteúdos mentais.
Esses conteúdos, através de associações entre si, criam identificações e passam
a ser determinantes para a percepção, o julgamento, o sentir e o agir do
sujeito. A produção mental em cadeia cria assim a vivência de uma realidade interna
pessoal que se mantém, uma noção de individualidade manifesta como um eu
contínuo (asmita).
Se
a mente apresenta-se como constante inconstância, sendo muitas vezes pura turbulência,
Patanjali afirma então que yoga é a contenção, a restrição ou o recolhimento do
fluxo desse constante movimento. Nirodhah é o controle das vrittis de chitta. Entretanto, esse controle não diz respeito à cessação
do pensar ou à destruição da capacidade mental, mas aponta para uma experiência
que está além dos conteúdos mentais e dos recursos do pensar. No aforismo 1.3
Patanjali descreve que com a contenção dos fluxos mentais “Aquele que Vê” se
revela. Essa condição de testemunhar a experiência mental indica uma consciência
diferente daquela de estar envolvida no fluxo mental, esta não é mais a
condição de participante do fluxo e seus conteúdos, mas de observador deste. No
samkhya,
filosofia irmã do yoga, esse aspecto observador recebe o nome de purusha, que pode ser traduzido por homem, mas
indicando seu princípio transcendente, o Si Mesmo, aquilo que está além das
identificações corporais, emocionais e mentais. Yoga é a revelação de purusha,
é o processo que leva o praticante identificado com sua natureza física,
emocional e mental a poder vivenciar o ser testemunha de si, a estar como Si Mesmo.
Portanto, longe de parar de pensar ou de limitar-se ao estabelecimento de estados
de relaxamento mental, embora isso se dê inevitavelmente, a contenção das flutuações
mentais mostra-se como um recurso que permite o acesso a uma nova identidade
transcendente. No aforismo 1.4 Patanjali mostra que o estado ordinário de
consciência é o de identificação com as variações mentais, onde “Aquele que Vê”
encontra-se encoberto pela poeira da movimentação e turbulência mental. Este
estado é de “não yoga”, de não união, estado em que se mantém o equívoco e a
limitação da identidade mental, onde “eu sou o que penso que sou”.
Ao
longo do Yoga Sutra são utilizados ainda os conceitos de impressões
mentais (sanskara) e de impregnações latentes (vasana) referindo-se aos
conteúdos inconscientes que produzem e mantém as identificações mentais. São
descritos também diferentes processos mentais (klesa), diversos estados
e níveis de consciência, como a concentração (dharana), a meditação (dhyana),
os graus de êxtase do Si Mesmo (samadhi) e o estado de integração,
transcendência e libertação final (kaivalyam), meta última de toda
prática de yoga. Há ainda um capítulo quase que todo dedicado aos vários poderes
psíquicos (siddhi) que a prática avançada pode despertar no praticante,
assim como a descrição de dez princípios éticos fundamentais (yama
e niyama),
sem os quais a prática de técnicas torna-se não apenas superficial, mas também
facilmente equivocada e prejudicial. Esses princípios não são utilizados como
regras morais fechadas em si, mas como fonte de auto-observação, identificação
e transformação de padrões de comportamento.
Relações
Após
essa pequena, fragmentada e brevíssima exposição fica evidente que o yoga busca
algo distinto da boa forma física, ou mesmo do relaxamento, da diminuição do
stress e do bem estar, muito embora possibilite todos esses benefícios com
qualidade. Para viabilizar a sua meta de liberação do sofrimento disponibiliza
alguns recursos teóricos e práticos que o aproximam, profunda e intimamente, do
que entendemos hoje como psicologia, principalmente da psicologia clínica em
suas diversas abordagens. O yoga e a psicoterapia se alinham nesse preciso e
típico momento humano, o de constatar o sofrimento e as limitações da própria
condição e buscar um caminho de alívio, significação e salvação. Os meios para
tal empreitada são múltiplos, assim como são as muitas linhas do yoga e da
psicoterapia, porém, em todas elas, de alguma forma, há algum trabalho de transformação
do aparelho psicomental. Apesar das divergências entre as muitas cartografias
desse aparelho, e conseqüentes metodologias, o trabalho se dá através de algum
aspecto dele, podendo ser este um ponto em comum entre yoga e psicoterapia,
assim como a necessidade de que esse trabalho não seja uma especulação, mas sim
experienciado em primeira pessoa.
Na
relação entre yoga e psicologia nota-se também a proximidade existente entre
algumas de suas práticas com determinadas escolas psicológicas, sendo possível
fazer paralelos entre aspectos das práticas do yoga com algumas das escolas que
compõem cada uma das quatro forças da psicologia. Nas abordagens humanistas e
transpessoais, terceira e quarta forças, essa relação fica mais visível, quer seja
pela visão de homem e de mundo, quer seja pelos métodos e técnicas adotados. Foco
no aqui agora, reconhecimento da terapêutica dos diferentes estados de consciência,
transformação psíquica pelo trabalho corporal, respiratório e energético, utilização
de recursos como rituais e símbolos, abertura e interesse pelos potenciais
humanos últimos e por conceitos como intuição, auto-realização felicidade,
sentido da vida e transcendência, entre outros, são temas recorrentes nessas
escolas e possuem paralelos no yoga, ou mesmo foram inspirados em seus fundamentos.
Na primeira força, o behaviorismo, a busca da clareza e o controle dos
processos mentais, cognitivos e comportamentais se assemelham aos percursos e
resultados de algumas formas de meditação, e, por esse motivo mesmo, técnicas
de meditação do tipo mindfulness vêm sido incorporadas entre seus recursos
terapêuticos. Já na segunda força, a psicanálise, a ponte se faz na importância
dos conteúdos e dos processos inconscientes que guardam grande força emocional
e poder identificatório. Pode-se apontar também para o diálogo entre a
experiência dos poderes psíquicos descritos, comuns em diversas práticas de espiritualidade
e misticismo, com os estudos da psicologia Anomalística.
Por
sua vez, através do conceito de identidade é possível fazer uma importante
diferenciação entre esses dois saberes. Enquanto que o yoga tem como meta final
a experiência da identidade última, aquela que está além de todas as
identidades parciais e restritas da individualidade nos níveis biológico,
psicológico e social, a psicologia tem como proposta e meio de intervenção a
facilitação na diferenciação, reconhecimento e fortalecimento dessas mesmas
identidades. Metas diferentes que podem encontrar, no momento atual, uma valiosa,
inédita e necessária integração e complementaridade.
Conclusão
O
diálogo da psicologia com esse saber tradicional, yoga e meditação, pode ser
uma rica oportunidade de questionamento e ampliação da psicologia sobre seu
objeto de estudo, a psique, ao mesmo tempo em que esta mantém seu olhar,
compreensão e intervenção nas demandas e desafios da nossa complexa sociedade
contemporânea. Porém, esse diálogo entre yoga e psicologia pode, e precisa, ir
além do viés da aplicação de “técnicas para a saúde, relaxamento e bem estar”. Mais
do que esses benefícios, já bem comprovados, o yoga aponta diretamente para o
caminho da experiência da transcendência e suas questões práticas, fundamentado
em séculos de experimentação.
Referências
Barbosa, CEG. Os Yogasutras de Patanjali. São Paulo:
edição do autor, 2006.
Boainain Jr, E. Tornar-se transpessoal: transcendência e
espiritualidade na obra de Carl Rogers. São Paulo: Summus, 1998.
Broad, W. A moderna ciência do yoga: os riscos e as
recompensas. Rio de Janeiro: Valentina, 2013.
Dauster, G. Yoga Sutra de Patanjali: uma abordagem
prática. Chapada dos Veadeiros: Paraíso dos Pândavas, 2007.
Eliade, M. Yoga: imortalidade e liberdade. São
Paulo: Palas Athena, 1996.
Feuerstein, G. A tradição do yoga: história, literatura,
filosofia e prática. São Paulo: Pensamento, 2005a.
Feuerstein, G. Uma visão
profunda do yoga: teoria e prática. São Paulo: Pensamento, 2005b.
Hall, CS e Lindez, G. Teorias da personalidade (vol.2). São
Paulo: EPU, 1984.
Manual
de práticas integrativas e complementares no SUS.
Secretaria da Saúde, Governo do Espírito Santo, 2013.