Recentemente assisti a um simpático vídeo promocional sobre o
trabalho de coach fundamentado na neurociência. Nele são apresentadas
justificativas para que cultivemos a atitude de gratidão. Quem já experimentou
sabe que a gratidão é um profundo sentimento que abre muitas portas, que nos
permite novas formas de relacionamento conosco mesmos, com os outros, com nossas
experiências e com a vida em geral. A gratidão aparece nas religiões e em
muitas tradições da espiritualidade como uma chave para a abertura do coração e
um dos meios de acessos a transformações pessoais e ao divino, e, juntamente com
a compaixão e o amor, é um dos sentimentos essenciais que pode e deve ser
cultivado na subjetividade do praticante. A gratidão dissolve a noção de
individualidade e a percepção egóica de se estar à parte da criação.
Mas o que me importou mesmo nesse vídeo foi a justificativa dada
para se falar da gratidão. Deixou-se bem claro de que isso nada tinha haver com
religiosidade ou fé, pelo contrário, era algo respaldado pelas ultimas
descobertas da neurociência. Após essa importante ressalva o vídeo adverte que
devemos sempre tomar decisões neurologicamente corretas, e então apresenta
alguns esquemas sobre o funcionamento cerebral, explicando como determinada
substância é inibida ou produzida no cérebro e de como isso promove ou não
determinados sentimentos. Expõe-se um didático raio-x da fisiologia da
gratidão. A neurociência explica a química que produz nossas emoções e demais
experiências subjetivas, e ela nos mostra as provas desses dados em imagens ao
vivo e a cores. Realmente é um avanço extraordinário que permite a compreensão de
muitas questões comportamentais, patológicas e não patológicas, assim como
abrir novas perspectivas para o que já se sabia. Atualmente o clássico bordão “Freud
explica” parece estar dando a vez para o “a neurociência explica”.
O vídeo pareceu ter me autorizado a cultivar a gratidão (autorização
mais significativa ainda caso eu fosse alguém do mundo corporativo, público
aparente do vídeo), e mais do que isso, me explicou de forma simples e acessível
como ela funciona e como ela é benéfica e importante para que eu seja feliz. Acho
louvável um sentimento como esse ser tema de aulas, de estudos, explicações e
treinamentos. A humanidade agradece por isso, pois todos nos precisamos e nos
beneficiamos do sentir-se grato.
Mas faço esse comentário sobre o vídeo da neurociência apenas
para fazer uma observação: as informações da neurociência sobre como o cérebro funciona
e de como as reações químicas das emoções acontecem não fazem a menor diferença
para a nossa experiência direta e pessoal. Nenhuma, nenhuma, nenhuma. Saber a neuroquímica
da gratidão não nos faz senti-la, assim como ler um cardápio não nos sacia, embora
provoque nossa imaginação e estimule respostas fisiológicas. Saber sobre a
fisiologia cerebral a respeito da gratidão, ou da depressão, não interfere em
nada em nossa experiência pessoal e intransferível de estar grato ou deprimido.
Hoje em dia não é difícil encontrar pessoas que se autodiagnosticam
como depressivas, e que, além disso, oferecem-nos explicações sobre as causas
da própria doença dizendo que é por falta de uma substância no cérebro. Também é
cada vez mais frequente pessoas se interessarem e praticarem Yoga e/ou meditação
com a justificativa de que essas são atividades com comprovados efeitos benéficos
para o funcionamento do cérebro e de todo sistema nervoso.
Ao longo dos últimos
anos a meditação tem recebido significativa atenção por parte da neurociência através
de diversos estudos que explicam e ampliam a compreensão de como ela realmente funciona.
Isso é promissor e bastante louvável, tão bom quanto os estudos sobre a gratidão,
mas não podemos confundir essas informações sobre a meditação com a meditação e
nem o entendimento da fisiologia da gratidão com a gratidão. A imagem mental sobre
a gratidão não é a emoção gratidão, o entendimento mental do que é meditação não
é o estado meditativo. Nesse sentido, essas informações sobre, a respeito de, podem
levantar muita poeira mental e embaraçar o acesso à experiência direta de
meditar, ou de sentir-se grato. O que a gratidão ou a meditação podem nos oferecer vai muito
além das sinapses e dos limites do cérebro, mas esse além precisa ser vivido na
pele, não pode ser apenas um conteúdo intelectual. Na verdade a meditação e a gratidão
vão além do conteúdo mental, e o seu grande valor é exatamente esse, possibilitar
a transcendência do nível mental e racional de consciência.
Que os estudos e as descobertas da neurociência continuem, e
que essas informações possam orientar novas propostas de políticas e estratégias
de clinicas, hospitais, universidades, empresas, escolas, governos e da sociedade
em geral. Mas quando você for meditar, esqueça a neurociência e todos os benefícios
comprovados da meditação. Quando for para a vida, para a experiência imediata de
sentir (que é quando a vida vale à pena) esqueça a neurociência e seus esquemas.
Mais do que isso, esqueça principalmente quem, ou aquilo, que você supõem ser.
Marcos Taschetto
Marcos Taschetto