Já no final da primeira sessão pergunto ao paciente como se
sente. Ele diz que está bem, que sente-se aliviado, pois esperava que eu
batesse mais nele. Ele havia me contado uma parte de sua história, o que incluía
a passagem por alguns terapeutas, psicólogos e psiquiatras, e que, em várias
oportunidades “apanhou” de seus cuidadores. Na verdade foram situações de
confrontos, de apresentação de limites e de não correspondências de suas
expectativas o que ele chamava de apanhar, mas a expressão “me batesse mais” tocou-me
especialmente, e despertou algumas lembranças.
A primeira delas foi do tempo da minha faculdade de
psicologia. Entre nós alunos havia sempre um buchicho sobre quem estava fazendo
terapia e de como ela estava. Esse buchicho esquentava quanto se discutia o
quanto era bom o terapeuta de cada um, e atingia o seu ápice quando tentávamos deixar
claro o poder de cada um deles. Um critério valioso para medir esse poder era o
estado em que se ficava após as sessões. Sair arrasado, chorando, desorientado,
decepcionado e zonzo era um ótimo sinal! Levar “uns tapas na cara”, umas
cutucadas, umas alfinetadas, uns “presta atenção”, ficar sem chão, tudo isso também
era entendido como muito positivo. Hoje tudo isso me parece um pouco exagerado,
mas era assim que boa parte dos alunos do curso de psicologia avaliavam um terapeuta
como bom.
Outra imagem que me veio foi a de algumas situações em que tive
a valiosa oportunidade de escutar alunos do ensino médio falarem sobre seus
professores. Alguns deles eram considerados bonzinhos, dedicados, educados, legais,
mas com pouca ou sem nenhuma “moral” com os alunos. Eram coitados que não
conseguiam dominar a turma, que perdiam as rédeas durante as aulas, que choravam
e que se sentiam fracos e que não aguentavam o tranco de ser professor. Já
alguns poucos professores eram “f....”, com esses eles não brincavam, pois
sabiam que eles seriam enérgicos e não deixariam passar nada. Admiravam e temia
esses professores durões, apesar de não sentirem-se bem em suas aulas e de não
acharem que explicavam bem a matéria. Lembrei-me também de um professor que
tive e da postura de alguns professores de Yoga que se destacam pela atitude
austera de tratar seus alunos. Tapas, fala rude, cara feia, broncas, rigidez
técnica, correções exageradas, aulas muito exigentes.... Tudo em nome de um
alto nível de Yoga que muitos alunos pagavam caro para ter.
Lembrei-me também da minha inesquecível época de quartel, ambiente
povoado por figuras únicas. Uma delas era um certo capitão com forte sotaque
carioca que usava uma boina vermelha. Paraquedismo, sobrevivência na selva,
infantaria, técnicas de guerra... ele já tinha feito de tudo no mundo militar,
era o próprio Rambo, o “cara” do quartel. Era temido e admirado, intensamente,
pelos soldados pela austeridade e rigor com que tratava qualquer situação. Aí
de quem fizesse alguma coisa errada perto dele!
Recordei-me de mais algumas outras situações, mas essas já são
suficientes para constatar o quanto o poder nos atrai. Todos esses personagens
que recordei estavam emanando poder, ou, melhor dizendo, estavam sendo vistos
como possuidores de muito poder por seus “subalternos”. Os alunos da psicologia,
do ensino médio, do Yoga e os soldados faziam essa generosa concessão à essas
figuras. É como se houvesse o seguinte diálogo entre eles: “Veja como eu tenho
poder, como eu posso, como eu sei, como sou grande e potente!!”, e do outro
lado: “Sim eu sei, eu vejo o quanto você é poderoso e o quanto eu sou fraco,
ignorante, inseguro e incapaz, e por isso mesmo tenho por você admiração e temor.” Um diálogo
silencioso e invisível, mas que determina as posições de cada um no jogo social,
e que tem o real poder de traçar diferentes destinos.
Essa distribuição desigual de poder nos diferentes papéis
parece até ser adequada aos objetivos militares, ou àquelas situações onde a
intenção de se controlar conduzir o outro se entende como necessária, apesar de
tal conduta ser sempre discutível. Mas o que é de se pensar seriamente é a presença
dessa situação de poder nas relações de cuidado e aprendizagem. Um professor
encarnado de poder não abre espaço para a aprendizagem e descobertas de seus
alunos. Um professor de Yoga berrando poder não facilita em nada o mergulho do
aluno em sua prática. Um terapeuta sentado no trono do poder não legitima e
nem apóia a autonomia de seu paciente.
Todas essas situações criam a falsa
sensação de que só um lado da moeda possui poder, de que há aquele que o tem e
há aquele que não o tem. Vaidade bem alimentada de um lado e estima desnutrida
do outro. Profundo equívoco, e eficiente forma de se dar o primeiro passo para
a luta e guerra pela conquista do poder.